Você encontra mais pervertidos quando é pobre

As ativistas mimadas que dirigem nossas instituições não têm ideia do que estão desencadeando sobre as mulheres. Tradução do artigo de Róisín Michaux.1

Introdução, por Correnteza Feminista

Quando os espaços exclusivos das mulheres entram em discussão, sabemos que as próprias mulheres compõem a maior parte no coro de vozes a relativizar a importância dos espaços separados por sexo. A ignorância sobre a realidade de nossa própria classe sexual e sobre a história dos movimentos de mulheres atinge níveis assustadores quando vemos que a maior parte das líderes progressistas espalhadas pelas organizações mundo afora estão alheias ao repertório básico da teoria feminista. Mais do que uma lista de leituras obrigatórias, a teoria acerca da libertação das mulheres é constituída antes de um olhar atento e comprometido com a realidade desta metade da humanidade.

Mulheres estão por toda parte, em todos os biomas, cidades e culturas. Em todas as vilas, favelas e florestas. A alienação crescente acerca da realidade material das mesmas talvez constitua o maior sintoma dissociativo de nossa espécie. São os nossos corpos, os corpos do sexo feminino, que são desumanizados, assediados, explorados sexualmente, estuprados, violentados na hora do parto, assassinados. E quem nos assedia, explora, estupra, violenta e assassina são homens: os perpetradores convictos de todos os tipos de violência.

Quando mulheres que defendem seus espaços exclusivos são acusadas de serem anti-trans, o que está sendo dito é que quando mulheres colocam limites pela sua autodefesa e falam acerca de sua própria realidade, isso é ofensivo. É impor que devemos ignorar a violência generalizada contra nossos corpos, supostamente para que alguns homens se sintam bem com suas identidades autopercebidas. Quando tão facilmente são relativizados nossos direitos, nossa privacidade e nossa segurança, a sociedade está ensinando a misoginia a novas gerações. E ela irá penalizar mais as mulheres empobrecidas e racializadas.

Às vezes, dados estatísticos não bastam pra que nos demos conta: precisamos de um choque de realidade. Assim soam as palavras pungentes de Róisín Michaux, neste texto em que nos convida às memórias de sua própria experiência desde a infância. São relatos de uma condição de pobreza e violência sexual que continuará batendo à porta da esmagadora maioria das mulheres e crianças no mundo todo, não importa o quanto as elites progressistas se esforcem para impor a abstração do gênero sobre a realidade.

Com vocês, o primeiro de uma série de textos traduzidos de Róisín Michaux.

“Cortiços”, de Hilda Goldwag
Você encontra mais pervertidos quando é pobre, por Róisín Michaux

Eu cresci pobre de verdade. Um homem de nossa vizinhança costumava vir e expulsar os ladrões – viciados em heroína e andarilhos – de nossa casa com uma tábua de madeira no meio da noite. A tábua de madeira tinha um prego. Minha mãe o chamava em vez de chamar a polícia, porque os policiais nunca chegavam a tempo.

A polícia chegava bem mais tarde. Eu me sentava na cozinha com minha camisola e os observava procurando impressões digitais e conversando com minha mãe enquanto esperávamos a chaleira ferver, se essa não tivesse sido roubada. Caso contrário, fervíamos a água na panela, se essa não tivesse sido roubada.

Tenho lembranças do homem, nosso salvador do bairro com a arma improvisada, indo em direção à nossa casa com flores para minha mãe. Ele vinha cantando, bêbado do bar. Sempre presumi que sua esposa o estivesse observando com fúria por trás da janela quando ele batia à nossa porta. Cheirando a bebida, ele abraçava, beijava e babava na minha mãe, porque ela estava em dívida com ele. Muito obrigada por nos ajudar. Seus filhos adultos se sentiam no mesmo direito.

O que estou tentando dizer é que, quando você é pobre, você está vulnerável.2

A polícia não vem porque há muitas chamadas ou porque o bairro é muito perigoso. Há muitas pessoas, com muitos problemas. Os policiais deixam que vocês resolvam o problema entre si.

Você não pode se mudar de casa se o pedófilo da vizinhança molestar sua filha porque você demorou anos para conseguir a moradia social do estado. Você deixa suas crianças com pessoas que mal conhece porque não pode pagar uma babá de sua confiança. Você tem que trabalhar durante todo o verão porque não tem férias remuneradas, então suas filhas e filhos brincam na rua de manhã até a noite. Eles veem coisas. Coisas acontecem com eles. Coisas acontecem com as outras crianças, e suas filhas e filhos veem essas coisas também.

Os homens ao seu redor não têm emprego, estão deprimidos e bebem demais, o que é um fator de risco para o estupro de crianças. As doenças mentais passam sem ser tratadas. Às vezes, eles precisam de um toque para alegrar o dia. Um pequeno estímulo. Você não diz nada porque precisa deles para evitar que os ladrões estuprem sua mãe quando a encontrarem sozinha em uma casa sem homem.

Se tiver sorte, você tem um irmão mais velho que um dia quebrará as janelas do pervertido em retribuição. A esposa do tarado achará que foi algo aleatório.

Quando adolescente, você trabalha no boteco do bairro porque não consegue um estágio na empresa do seu pai. Porque não há pai e não há empresa. Há apenas um boteco e uma casa de apostas em um conjunto habitacional popular e milhares de homens entediados e com tesão.

Quando não há trabalho, você faz de tudo para manter seu emprego. Mesmo quando seu chefe tem que repetidamente pedir desculpas, eu tenho que passar rapidinho aqui me apertando em  você, no espaço estreito atrás do balcão da loja, ou na sala de materiais de limpeza, ou na pequena cantina. As mulheres que limpam casas, hotéis e escritórios têm de se curvar muito e, às vezes – bem, você sabe.

Quando você é pobre, não pode dizer nada. Tudo o que você pode fazer é alertar outras mulheres. Mesmo que a polícia acredite em você e mesmo que se importe, há assassinos, pacotes de heroína, bombas embaixo de carros, e o orçamento deles não deve ser gasto na perseguição de tarados inofensivos.

Você não tem um advogado na família. Ninguém tem contatos no partido político local (você nem sabe que isso é uma possibilidade). Isso acontece com todas as mulheres e meninas, você não é especial. Você não pode fazer nada a respeito, porque quando você é pobre, ninguém vem salvá-la, exceto outras pessoas pobres.

Por que mulheres e meninas precisam de espaço

A superlotação está associada ao abuso sexual. Quanto menos metros quadrados houver em seu apartamento, maior será a probabilidade de seu primo, irmão, pai ou tio “deitar acidentalmente na cama errada” no meio da noite. Com quanto mais homens uma menina tiver que dividir o banheiro, maior a probabilidade de ser molestada. Mas é claro.

As jovens que administram a conta das Nações Unidas no Twitter, ou a ministra da Igualdade de Gênero (aquela com pronomes em sua biografia), não sabem de nada disso. Nem a pesquisadora sobre políticas de gênero, de 20 e poucos anos, assistente da ministra.

Claro. Teve aquela vez em que ela fez um intercâmbio estudantil em Pisa e um cara no museu agarrou sua bunda. Ela escreveu um post sobre isso e agora fala sobre a experiência vivida de ser uma sobrevivente. Ela pode colocar “trauma-informed3 em sua biografia do Twitter quando conseguir o cargo de diretora-chefe de comunicação em uma ONG voltada aos direitos da mulher.

Há todo um universo lá fora que essas mulheres nunca sequer imaginaram. Elas assistiram a filmes sobre os pobres, mas nenhum diretor de cinema jamais capturou aquele sentimento desesperado de estar vulnerável por não ter dinheiro, nenhum recurso, nenhuma autoridade, nenhuma proteção.

“Mulheres com dinheiro também são assediadas!” Disseram-me, e eu sei. Porque agora sou uma mulher com dinheiro. Não precisa me dizer isso. E não estou dizendo que os homens pobres têm maior probabilidade de serem pervertidos e pedófilos. Estou dizendo que qualquer homem, dadas as circunstâncias certas, pode ser um deles. É um jogo de números.

Mas as moças que ditam as regras agora, bom, elas não enxergam nenhum motivo pelo qual algumas “maçãs podres” deveriam impedir que homens homossexuais sofredores possam viver sua vida autêntica e verdadeira no corpo que merecem. Elas não acreditam quando você diz a elas que os homens são oportunistas. Ou pior, elas acham que sabem o que você quer dizer; elas pensam sobre aquela vez no museu.

Vestiários com frestas entre a cortina e a parede, banheiros minúsculos de bares nos quais precisamos nos espremer para passarmos umas pelas outras, áreas de banho compartilhadas na piscina – se essas mulheres forem importunadas sexualmente, bem, elas podem simplesmente entrar em seus carros e dirigir para um lugar diferente e melhor. Elas podem vender suas casas e ir morar em um lugar que não esteja cheio de homens desesperados e de justiça feita com as próprias mãos. Elas podem ir para a piscina mais cara, aquela com portas que se trancam. Aquela que é frequentada por homens com muito a perder.

Sobre

Róisín Michaux é uma jornalista da Bélgica. Escreve sobre direitos baseados no sexo e investiga a influência da ideologia de gênero na União Européia. Você pode seguí-la no X (Twitter) @RoisinMichaux e no Substack @Peaked.

Notas

  1. O original, “You meet more perverts when you’re poor”, foi publicado em 21 de janeiro de 2023, e está disponível no Substack de Róisín Michaux: https://peaked.substack.com/p/you-meet-more-perverts-when-youre?utm_source=profile&utm_medium=reader2
  2. [N.T.: No original, o texto de Michaux diz: “When you are poor, you are compromised”. O verbo “compromise” significa, entre outras coisas, resolver uma disputa cedendo em alguns termos que seriam importantes manter, enfraquecer princípios ao aceitar parâmetros abaixo daqueles desejáveis – nesse contexto, fazer concessões sobre a própria segurança que colocam meninas e mulheres em risco, mas que são necessárias para a sobrevivência, para garantir o hoje ou o amanhã. Para fins deste texto, vamos traduzir como “vulnerável”, apesar de sabermos que este termo não capta o conteúdo de “compromised”.]
  3. “Trauma-informed” (tradução livre: informado sobre trauma) é um conceito utilizado para se referir a serviços e estruturas de atendimento a pessoas que sofreram traumas, ou consequências negativas, após serem expostas a experiências de risco.
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