Pistas para montar uma parte do quebra-cabeça

O artigo de Luisa Velázquez Herrera1 apresenta uma sucinta genealogia da despolitização do feminismo desde os anos 1970 até os dias atuais, com enfoque na resistência de diversas correntes e feministas latino-americanas à tomada do feminismo pelo “gênero”. Tradução por Correnteza Feminista.

Uma introdução, por Correnteza Feminista

Toda classificação é resultado de uma guerra. Afinal de contas, como diz a militante lesbofeminista mexicana Luisa Velázquez Herrera, “a natureza não se classifica sozinha”, é a sociedade que o faz – no nosso caso, uma sociedade patriarcal, na qual as mulheres são impedidas de nomear a realidade, poder reservado exclusivamente aos homens. 

Esse poder de nomear2 nem sempre precisa ser exercido diretamente pelos homens: há instituições patriarcais e contingentes imensos de mulheres leais aos homens – mesmo que se creiam e se divulguem como “feministas”, na verdade praticam uma rebeldia meramente estética e funcional ao patriarcado, e dedicam suas vidas a guardar os portões do poder masculino de dar nome às coisas, seja na academia, na política institucional, nos partidos de esquerda, na militância, na cultura. Elas também fazem parte da nossa história, pois interpretam até hoje um papel fundamental na fagocitação do feminismo pelo “gênero”.

O surgimento da categoria “gênero” no feminismo e, mais especificamente, na América Latina, tem a ver com o poder masculino de nomear, e com o processo de cooptação de lideranças feministas e de organizações de nosso continente, resultando na consequente ONGuização do movimento feminista (e de outras lutas). Vivemos agora o resultado de uma guerra, e parte da nossa derrota está expressa na perda do nosso poder de nomear e classificar: “sexo” não existe, e descrições da realidade diretamente conectadas à materialidade, como “violência masculina”, “violência sexual” e “patriarcado”, são substituídas por conceitos vagos e despolitizados, como “violência de gênero” e “sistema sexo/gênero”. Como diz Luisa, a chamada “perspectiva de gênero” não provém da luta das mulheres contada por elas próprias, mas sim de uma interpretação patriarcal da história das mulheres.  

Não é acidental o fato de essas expressões não comunicarem absolutamente nada sobre as estruturas em jogo e sobre os agentes da violência, e precisarem de longas explicações para se fazer entender (carregadas também de palavras e expressões escorregadias). É precisamente esse o objetivo: confundir, enquanto se arranca os dentes caninos da fera que é (ou poderia ser) o feminismo. Mas como chegamos até aqui?

O texto de Luisa Velázquez Herrera nos ajuda a começar a responder a essa pergunta. Luisa nos apresenta uma sucinta genealogia da despolitização do feminismo desde os anos 1970 até os dias atuais, com enfoque na resistência de diversas correntes e feministas latino-americanas à tomada do feminismo pelo “gênero”. Em encontros feministas e lésbicos, publicações, convergências e divergências ocorridas na América Latina desde os anos 1980, essas mulheres denunciaram a imposição da agenda despolitizante e patriarcal de “gênero” como parte do pacote de ajuste estrutural neoliberal imposto aos países latino-americanos, que chegava também via agências de cooperação internacional no financiamento à ONGs (que se multiplicavam conforme minguavam os investimentos públicos), conformando um ataque sem precedentes à autonomia política, teórica e financeira dos movimentos feministas de nosso continente. O pós-modernismo, braço teórico e ideológico do neoliberalismo, chegou e se instalou na esquerda e no feminismo brasileiros, derretendo a realidade material, a linguagem, as ferramentas teóricas da crítica, e buscando (e, em alguns casos, conseguindo) destruir a capacidade das mulheres de construir solidariedade duradoura entre si, inclusive nas suas diferenças e divergências. 

Conheça, pelas palavras de Luisa que temos a honra de traduzir e publicar pela Correnteza Feminista, um pouco da trajetória, das convergências e divergências das feministas latino-americanas que se reuniram sob o debate da necessidade de autonomia no movimento feminista, e questionaram o processo de cooptação em massa que precedeu a vitória da teoria de “gênero”. Desobedeça – é essa a história das mulheres de nosso continente.

Imagem de autoria desconhecida
Pistas para montar uma parte do quebra-cabeça, por Luisa Velázquez Herrera

Ao longo do tempo, as mulheres organizadas por meio do feminismo sofreram uma série de infiltrações em sua teoria por parte dos homens, deformando suas contribuições a tal ponto que fomos levadas a acreditar que as mulheres se organizaram para propor remendos ou paliativos ao próprio sistema que nos oprime a fim de sermos “incluídas”. Entretanto, essa é apenas uma versão maniqueísta das diferentes genealogias das mulheres. Portanto, abordaremos agora um pouco do contexto para entender onde estamos situadas.

Contexto global: início da despolitização

Em 1969, Kate Millet, uma das principais autoras do feminismo radical, apresentou sua tese acadêmica “Política Sexual”, na qual analisou o sistema patriarcal com seus diferentes elementos, um trabalho pioneiro sobre o assunto na esfera acadêmica:

Se considerarmos o governo patriarcal como uma instituição em que metade da população (ou seja, as mulheres) está sob o controle da outra metade (homens), descobriremos que o patriarcado se baseia em dois princípios fundamentais: o homem deve dominar a mulher, e o homem mais velho deve dominar o mais jovem.3

Apenas seis anos após essa definição de Millet – que enfatiza a dominação dos homens sobre as mulheres -, contribuições subsequentes começaram a despolitizar essa análise. Gayle Rubin, em seu ensaio “O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo”, publicado em 1975, suavizou o alcance da análise feminista da seguinte forma:

[…] Chamei essa parte da vida social de “sistema de sexo/gênero”, por falta de um termo mais elegante. Como definição preliminar, um “sistema de sexo/gênero” é o conjunto de arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e no qual essas necessidades humanas transformadoras são satisfeitas.4

Com o novo termo, não há mais nenhuma referência à dominação das mulheres, sobre a qual falava Millet. A crítica se dilui a ponto de ser reduzida a uma questão de sexualidade e papéis. Esse movimento teórico representa a porta de entrada para a fagocitação do feminismo pela abordagem pós-moderna: não há mais dominação, opressão ou exploração de nenhuma estrutura social sobre as mulheres, mas sim a agência do indivíduo que “escolhe” por acaso o que lhe é imposto.

A pós-modernidade no feminismo passará a justificar a exploração das mulheres para diferentes fins. Por exemplo, o pensamento feminista hegemônico (cujo lar é o mercado, os governos, as ONGs e a academia) argumentará que são as próprias mulheres que “decidem” seu próprio estupro por dinheiro, evitando observar, analisar e denunciar que existe um sistema histórico de homens chamado patriarcado que força as mulheres a sofrerem violência sexual para o benefício de maridos, cafetões e homens em geral.5

O apagamento das mulheres na teoria marcaria a base dos estudos de gênero, para se tornar, finalmente, no início dos anos 2000, o estudo dos homens e de suas identidades, por meio dos estudos trans e queer6, conforme denunciado pelas feministas radicais anglo-saxãs, feministas autônomas latino-americanas e lesbofeministas.

Atualmente, os estudos de gênero trans e queer argumentam que os sentimentos e as sensações dos homens são novos “gêneros” – ideias defendidas na filosofia pós-moderna de Michel Foucault na década de 1980 e, na última década, por meio dos trabalhos de Judith Butler e Paul Preciado, a partir dos quais se passará a afirmar que é possível ser qualquer gênero que se escolha, para assim “dinamitar” o gênero.

Para a filosofia e a teoria pós-modernas, a realidade material, ou seja, o corpo físico, historicizado por sistemas de opressão (sexo, raça e classe), passa a ser um elemento subjetivo que pode ser transformado em qualquer coisa, seja por meio de cirurgias, processos de hormonização ou uso de vestimentas, juntamente com formas sofisticadas de enunciação de identidade.

Em contrapartida, para o feminismo radical, autônomo e lesbofeminista, as opressões são depositadas em corpos físicos historicizados: a opressão de sexo é vivenciada por aquelas que nascem com uma vulva; a opressão racista, por pessoas racializadas e não-brancas; e a opressão de classe, por pessoas empobrecidas. Em nenhum desses casos, a opressão é escolhida ou existe fora do corpo. E isso não porque o corpo possui uma “essência” de opressão, mas sim porque o grupo dominante exerce essa violência sobre esse corpo físico, independentemente de suas afiliações identitárias.

Baseada no jogo de aparências, o objetivo da proposta pós-moderna é satisfazer o anseio de transformação social, que na década de 1960, acreditava-se, seria alcançada com a derrubada do sistema por meio da luta coletiva – mas que hoje é buscada por meio da escolha individual de roupas em combinações não convencionais de acordo com a moda atual. Por exemplo, Sayak Valencia, uma filósofa pós-moderna mexicana, afirma, seguindo essas abordagens, que a pessoa pode escolher ser o que desejar, à maneira de uma coreografia:

Sinto-me confortável em meu travestismo feminino, minha feminilidade é uma feminilidade maricas. Penso em deslocar os padrões de beleza, de corpo, de gênero e de sexualidade. Colocar em mim mesma uma barba tem sido como colocar uma pergunta no espaço. Além disso, contrastei isso com o fato de estar vestida de forma muito feminina, com lábios pintados e cabelos muito longos. Isso se torna muito político.7

Sayak, na época em que respondeu a essa entrevista, saía em público com um vestido e uma barba presa ao queixo, elementos suficientes para fazer política “disruptiva” e “transgressora”, de acordo com a abordagem pós-moderna, em que a estrutura social é ininteligível, mas desaparece pela vontade individual, em ações sempre relacionadas à aparência. Não é preciso dizer que a escolha do traje não rompe o sistema patriarcal capitalista.

Cabe enfatizar que o surgimento da abordagem pós-moderna, desde o início da década de 1980 até os dias atuais, não foi um acidente ou ingenuidade teórica. Nas palavras da feminista socialista e lesbofeminista Yan María Yaoyólotl:

O pensamento pós-moderno, na verdade, nada mais é do que a expressão da modernidade em decadência, ou seja, do capitalismo em agonia, que questiona a modernidade, mas superficialmente, sem chegar à sua essência, porque no fundo a maioria dos ideólogos pós-modernos deseja continuar a manter esse sistema como está […]8

Às vésperas da queda do Muro de Berlim, as posições, ações políticas, pronunciamentos e análises deixaram de examinar a violência, a dominação, a exploração e a opressão – ou seja, as estruturas sociais –, para priorizar o discurso da “agência”, da “escolha” e da “decisão” como eixo da “transgressão” da população. Sem se importar com o fato de que o que é escolhido estava determinado pelos sistemas historicamente instalados na sociedade, isto resultou em conjuntos de ações e comportamentos homogeneizados em favor da estrutura patriarcal (sexo, raça e classe).

Esse golpe foi sofrido por diferentes disciplinas e movimentos sociais. A entrada do neoliberalismo visava extinguir os protestos e as críticas ao sistema. No caso do feminismo, eles sobreviveram de forma contundente: memória, obras e textos de mulheres radicais, sobretudo lésbicas. Nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Austrália, teóricas feministas lésbicas como Andrea Dworkin e Sheila Jeffreys, entre outras; e na América Latina e no Caribe, textos, ações e criações de feministas autônomas, antirracistas, lésbico-feministas e lesbofeministas, que não deixaram de denunciar a cooptação da qual foi alvo a teoria feminista pelos estudos de gênero entre os anos 1990 e a primeira década do século XXI, em vozes como as de Yan María Yaoyólotl Castro, Margarita Pisano, Victoria Aldunate, María Galindo, Ochy Curiel, Yuderkys Espinosa, Karina Vergara Sánchez, entre muitas outras pensadoras.9

Preâmbulo ao feminismo autônomo

Compreende-se o feminismo como um conjunto de diferentes correntes de pensamento, lideradas e conformadas por mulheres em todo o mundo. Em sua explosão contemporânea, situada na década de 1970, o feminismo tinha como finalidade a libertação das mulheres, ou seja, a eliminação da escravidão velada imposta àquelas que nasceram com um corpo sexuado de mulher, isto é, com uma vulva – ou, como diz Karina Vergara Sánchez, com presumida capacidade paridora.

No auge contemporâneo do feminismo, as instituições do patriarcado – meios de comunicação, instituições governamentais, agências de cooperação internacional e academia – eliminaram gradualmente o risco que as mulheres organizadas representavam ao defender seus corpos, a terra e a água. Compraram uma parte do feminismo para diluir suas contribuições, transformando, assim – com seu dinheiro, interferência e meios –, a análise da opressão do patriarcado em uma descrição do sistema sexo/gênero, dando lugar à “perspectiva de gênero”, ou “estudos de gênero”. Isso foi denunciado principalmente por aquelas que formaram a confluência do feminismo autônomo na América Latina e no Caribe, como Margarita Pisano, Ximena Bedregal, Edda Gaviola, Victoria Aldunate, María Galindo, Julieta Paredes, Ochy Curiel, entre outras.

Segundo Mariana Villaverde, o debate sobre autonomia começou a ser alimentado em 1987, no IV Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, ano em que a maioria dos países começou a implementar programas políticos e econômicos neoliberais. A partir daquele momento, por meio de comunicados e pronunciamentos, mulheres (brasileiras, argentinas, chilenas, centro-americanas, colombianas, bolivianas, mexicanas etc) paulatinamente passaram a dialogar, discutir e denunciar a ingerência de agências de cooperação internacional nas organizações de mulheres.10

Deve-se dizer que o pensamento feminista autônomo foi uma confluência de diferentes correntes de mulheres provenientes de diferentes horizontes e tradições políticas11 que decidiram se separar dos processos de genderização12 e denunciar o processo de cooptação do feminismo no contexto da infiltração do neoliberalismo na América Latina e no Caribe. Aldunate relembra esse momento político que, aliás, não entrou para os livros de história patriarcal: “Em 1996, no VII Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, em Cartagena (Chile), muitas de nós decidimos nos ‘autodenominar’ autônomas. Não era mais possível não sermos explícitas contra a institucionalização do feminismo, a cooptação de nossas ideias e a invisibilização de nossas elaborações”.13

Após o encontro de 1996, explica Villaverde, a corrente autônoma decidiu criar seu próprio Encontro Feminista Autônomo Latino-Americano, no ano de 1998, em Sorata, Bolívia, iniciando assim sua própria história de reuniões e rupturas entre diferentes gerações de feministas autônomas.14

Foram as feministas autônomas latino-americanas e caribenhas que analisaram a perspectiva de gênero ou os estudos de gênero como uma estratégia patriarcal reativa diante da explosão contemporânea do feminismo. Ou seja, não provêm da história da luta das mulheres em defesa de suas vidas, corpo, liberdade e territórios, mas da interpretação patriarcal de tal história pelas instituições do poder masculino, a partir das quais foram freadas as revoltas e, portanto, as genealogias das mulheres – isto é, as histórias coletivas e ancestrais das mulheres.

Também cabe dizer que as feministas autônomas eram, em sua maioria, mulheres lésbicas. Diz Curiel: “Eu sempre digo que não é coincidência que a maioria das feministas autônomas sejamos lésbicas feministas ou que tenhamos uma posição antirracista, porque é a partir dessas posições que se pode articular um feminismo contra-hegemônico e crítico”.15

Dentro do pensamento da autonomia, é possível localizar diferentes correntes feministas. Por exemplo, as feministas da diferença seguiram o legado das teóricas italianas, postulando que a igualdade promulgada pela perspectiva de gênero era uma falsa saída. “A igualdade entre os sexos é a roupa com a qual se disfarça hoje a inferioridade das mulheres”, teorizou Carla Lonzi em “Escupamos sobre Hegel” (“Vamos cuspir em Hegel”, em tradução livre) publicado em 1970.16 Nessa linha de pensamento, mas no Chile, podemos mencionar Margarita Pisano e Edda Gaviola.

Também foram convocadas mulheres anarquistas e socialistas, que se reuniam no então coletivo “Mujeres Creando”, feministas bolivianas que elaboraram uma crítica ao Estado patriarcal, suas formas e suas regras, posicionando-se sobre a cooptação dos movimentos sociais. Algumas pensadoras visíveis dessa época foram María Galindo e Julieta Paredes.

Também participaram pensadoras e ativistas afrodescendentes cujas raízes estavam no pensamento antirracista, criticando os fundamentos do sistema colonial moderno – entre elas Ochy Curiel e Yuderkys Espinosa. Cabe dizer que, no início dos anos 2000, Curiel e Falquet foram as responsáveis por trazer as contribuições das materialistas francesas ao contexto feminista lésbico latino-americano e caribenho, ao traduzi-las para o espanhol – recuperando assim o legado de autoras como Monique Wittig e Colette Guillaumin, que até então não haviam sido analisadas por feministas lésbicas autônomas devido à lacuna do idioma. Isso significa que o pensamento feminista lésbico latino-americano e caribenho não se originou graças à interferência das francesas nesse território, mas sim que tais contribuições francesas somente foram conhecidas muito mais tarde, com um movimento lésbico já consolidado com sua própria história.

Também participaram do feminismo autônomo várias mulheres do pensamento lésbico feminista, especialmente do México, para as quais a análise da heterossexualidade compulsória é fundamental para compreender a constituição da máquina patriarcal capitalista.

Após o encontro e a ruptura do feminismo autônomo no início dos anos 2000, muitas correntes consolidariam outras propostas, como consequência das inegáveis e nutritivas diferenças entre todas elas, demonstradas na confluência autônoma. Por exemplo, no Chile, será proposto o feminismo radical da diferença; na Bolívia, a partir das bases comunitárias e socialistas, surgirá o feminismo comunitário; no Caribe, as feministas antirracistas se consolidarão por meio da proposta acadêmica do feminismo decolonial; e, finalmente, no México, as que se organizavam como feministas lésbicas formarão a estrutura do lesbofeminismo. Embora cada nova corrente contenha raízes das anteriores, ela constituirá uma nova proposta no tempo, com seus marcos teóricos muito bem delimitados, razão pela qual podem ser consideradas correntes feministas.

É preciso dizer que, a partir de 2015, algumas feministas que eram autônomas, como Galindo, Curiel e Espinosa, abandonarão suas críticas ao neoliberalismo e acabarão assumindo vários postulados pós-modernos. Por isso, é necessário conhecer as autoras em seu contexto e tempo, pois elas não são sujeitas estáticas, mas em mudança – e, portanto, suscetíveis a se tornarem aquilo que antes criticavam. Ainda assim, o feminismo autônomo pode ser lembrado porque foram mulheres que, de forma coletiva:

  1. Se distanciaram politicamente das políticas de integração de gênero;
  2. Denunciaram a perspectiva de gênero ou a tecnocracia de gênero como uma manobra do neoliberalismo para cooptar o movimento de mulheres;
  3. Denunciaram a intromissão de bancos, governos e acadêmicos na teoria e na prática feminista com o objetivo de fagocitar seu conteúdo;
  4. Analisaram o sistema capitalista, racista, colonial e heterossexual como a base da opressão, exploração e dominação dos homens sobre as mulheres;
  5. Realizaram encontros autônomos periódicos para a troca de ideias e ações na América Latina e no Caribe.

Embora hoje poucas saibam que o feminismo autônomo existiu, foi graças a essas mulheres reunidas que, nesses territórios, consolidou-se uma crítica antipatriarcal, anticapitalista, antirracista, anticolonial e anti-heterossexual, a partir de uma análise situada nesses territórios, e a partir da luta de mulheres concretas que politizaram sua existência sexuada de mulher nos sistemas de opressão. A título de comparação, no mesmo período, a maioria dos países brancos carecia de crítica coletiva ou do surgimento de propostas feministas radicais, devido à total intrusão da abordagem pós-moderna quase em sua totalidade – onde tornou-se dogma recitar autores e autoras pós-modernas.

Diferentemente de outros contextos, dezenas de mulheres beberam do feminismo autônomo na América Latina e no Caribe para moldar suas críticas ao Estado, ao neoliberalismo e à institucionalização do feminismo e, consequentemente, à agenda queer e trans, à exploração sexual das mulheres, ao aluguel de úteros, entre outras questões. Em outras palavras, houve uma geração imediatamente posterior às autônomas, que teve apoio não das feministas da década de 1970, mas de feministas locais mais bem situadas em seu contexto, seu tempo, sua terra.

A partir do feminismo autônomo, é possível explicar a forte presença de feministas críticas à pós-modernidade nessas regiões – embora, é importante dizer, não todas, já que houve uma forte neocolonização das lutas feministas. Atualmente se vive uma distorção do que no norte global era o feminismo radical, reduzindo-o hoje ao feminismo liberal em favor do Estado, dos partidos políticos e das políticas públicas. Nesse sentido, é possível delimitar, a partir das contribuições da autonomia em Abya Yala, que nenhum feminismo que aposte em reformar o patriarcado por meio das regras do Estado – ou seja, que proponha a constante “inclusão” das mulheres nas regras do patriarcado (propostas de lei, partidos políticos “feministas”, políticas públicas, academia, financiamento, ONGs etc.), não é nem autônomo e nem muito menos radical.

Notas

  1. [N.T.: Luisa é lesbofeminista mexicana que, além da produção acadêmica, possui textos e trabalhos que também podem ser conhecidos e consultados em sua página Menstruadora, bem como na revista La Crítica. Tradução livre por Correnteza Feminista. Título no original: “Pistas para armar una parte del rompecabezas”, disponível em: https://www.academia.edu/44981733/Pistas_para_armar_una_parte_del_rompecabezas]
  2. Já nos anos 1980, a feminista radical estadunidense Andrea Dworkin, mulher trabalhadora judia e lésbica, identificou o “poder de nomear” como um dos poderes dos homens na sociedade patriarcal. Em seu trabalho, Dworkin afirma: “Os homens têm o poder de nomear, um poder grande e sublime. Esse poder de nomear permite aos homens definir a experiência, articular fronteiras e valores, e designar a cada coisa seu alcance e suas qualidades, de determinar o que pode e o que não pode ser expresso, de controlar a percepção em si mesma.” Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women, A Plume Book, 1991, p. 17.)
  3. Kate Millet, “Política sexual”, Espanha, Ediciones Cátedra, 1995, p. 70.
  4. Gayle Rubin, “El tráfico de mujeres: notas sobre la economía del sexo”, México, Nueva Antropología, nº 30, vol. VIII, 1986, p. 97.
  5. O conceito de exploração – bem como de opressão e dominação – deixará de ser usado e será substituído por “trabalho” e “decisão”.
  6. Ao longo deste artigo, usaremos queer ou cuir de forma intercambiável, sendo o último a espanholização usada até mesmo nos círculos cuir na América Latina.
  7. Mauricio Patrón, “What the hell is queer?” [online], Time Out, quinta-feira, 30 de janeiro de 2014. Endereço de URL: https://www.timeoutmexico.mx/ciudad-de-mexico/gay-y-lesbico/que-diablos-es-ser-queer [acessado: 1 de setembro de 2019].
  8. Yan María Yaoyólotl, “La cosmopercepción indígena lesbofeminista ante el generismo capitalista”, Pensando los feminismos en Bolivia, Bolívia, Conexión Fondo de Emancipación, 2012, primeira edição, p. 232.
  9. Anos mais tarde, algumas dessas autoras, como María Galindo, Yuderkys Espinosa e Ochy Curiel, posicionariam-se a favor das propostas neoliberais que antes criticavam ou pareciam criticar, tais como a interferência da agenda trans no feminismo, e os interesses dos cafetões na exploração sexual das mulheres – chamando-a atualmente de “trabalho sexual” –, finalmente aderindo ao pensamento hegemônico racista e patriarcal.
  10. Mariana Gabriela Villaverde, “Genealogía del pensamiento feminista autónomo y radical en Latinoamérica y el Caribe, desde 1993 hasta la actualidad”, México, Universidad Autónoma Metropolitana, 2014, 30-35 pp.
  11. [N.T.: No original, “apuestas y pisos políticos” – proposições para o futuro e o chão comum político ao qual pertenciam essas mulheres, fosse o pertencimento a uma mesma organização, militância ou tradição política.]
  12. Genderização significa o desmantelamento da teoria feminista e sua substituição pela perspectiva de gênero promovida pelo neoliberalismo. [N.T.: No Brasil, também se encontra como “generificação”, “generização” e outros.]
  13. Victoria Aldunate Morales, “Cuerpo de mujer, riesgo de muerte. Violencia estructural y las trampas del género-‘generismo’”, Chile, Ediciones Sarri-Sarri Distro & Records, 2012, p. 262.
  14. Mariana Gabriela Villaverde, op. cit., p. 38.
  15. Mónica Ceja, “Desde la experiencia: Entrevista a Ochy Curiel” [on-line], Andamios, núm. 17, vol. 18, México, 2011, p. 185, endereço URL: http://www.scielo.org.mx/pdf/anda/v8n17/v8n17a9.pdf [acessado em: 2 de setembro de 2019]
  16. Carla Lonzi, “Escupamos sobre Hegel y otros escritos”, Espanha, Traficantes de sueños, Mapas, 2018, primeira edição, p. 27.

Bibliografia

Aldunate, Victoria, “Cuerpo de mujer, riesgo de muerte. Violencia estructural y las trampas del género-‘generismo’”, Chile, Ediciones Sarri-Sarri Distro & Records, 2012, 276 pp.

Ceja, Mónica, “Desde la experiencia: Entrevista a Ochy Curiel” [on-line], Andamios, núm. 17, vol. 18, México, 2011, p. 185, endereço URL: http://www.scielo.org.mx/pdf/anda/v8n17/v8n17a9.pdf [acessado em: 2 de setembro de 2019].

Lonzi, Carla, “Escupamos sobre Hegel y otros escritos”, Espanha, Traficantes de sueños, Mapas, 2018, primeira edição, 119 pp.

Millet, Kate, “Política sexual”, Espanha, Ediciones Cátedra, 1995, 634 pp.

Patrón, Mauricio, “¿Qué diablos es ser queer?” [online], Time Out, quinta-feira, 30 de janeiro de 2014. Endereço URL: https://www.timeoutmexico.mx/ciudad-de-mexico/gay-y-lesbico/que-diablos-es-ser-queer [Acessado em: 1 de setembro de 2019].

Rubin, Gayle, “El tráfico de mujeres: notas sobre la economía del sexo”, México, Nueva Antropología, núm. 30, vol. VIII, 1986, 95-143 pp.

Vergara Sánchez, Karina, “Sin heterosexualidad obligatoria no hay capitalismo” [on-line], La Crítica, México, 4 de setembro de 2015, endereço URL: http://www.la-critica.org/sin-heterosexualidad-obligatoria-no-hay-capitalismo/ [acessado em: 22 de agosto de 2020].

Villaverde, Mariana, “Genealogía del pensamiento feminista autónomo y radical en Latinoamérica y el Caribe, desde 1993 hasta la actualidad”, México, Universidad Autónoma Metropolitana, 2014, 138 pp.

Yaoyólotl, Yan María, “La cosmopercepción indígena lesbofeminista ante el generismo capitalista”, Pensando los feminismos en Bolivia, Bolivia, Conexión Fondo de Emancipación, 2012, primeira edição, 229-258 pp.

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