As noções radicais do feminismo são fundamentais para uma revolução social de base ecológica.

Colheita de flores – Maria Auxiliadora da Silva (1973)
Ao mesmo passo em que se tornou um termo conhecido entre a população em geral, o feminismo, desde a década de 1980, e mais intensamente a partir dos anos 2010, tem sofrido a ação de um contramovimento muito bem sucedido em neutralizá-lo, no que diz respeito aos efeitos sobre a produção intelectual e à conscientização de massas que haviam sido obtidos pela chamada Segunda Onda Feminista. Esse processo de desmobilização parte em grande medida de dentro das instituições acadêmicas e desenha o cenário que vivemos atualmente, em que o feminismo tornou-se, para grande parte das pessoas, um conceito difuso e sem definições objetivas, despertando inclusive a amizade das grandes mídias e marcas multinacionais. Um “feminismo” muito fácil de engolir, porém que não gera efeito significativo sobre a vida da esmagadora maioria das mulheres e nem sobre os pilares fundamentais da opressão sistêmica que recai sobre o sexo feminino.
Em outras palavras, podemos dizer que o que se passou com o feminismo foi uma apropriação e conseguinte esvaziamento de sentido promovidos pelo neoliberalismo e pelo paradigma epistemológico da pós-modernidade, de maneira a desmobilizar o movimento em seus fundamentos. Noções rasas e largamente difundidas como as ideias de “empoderamento pessoal”, “liberdade sexual” e “identidade de gênero”, que são o sumo da ideologia neoliberal e da reorganização patriarcal, têm espaço amplo nas revistas, programas de televisão e até mesmo nas escolas, enquanto a categoria mulher passa a ser denotada como ultrapassada para a luta feminista. 1
Por que será que, ao mesmo tempo em que muitas pessoas têm a impressão de que há, no mundo, cada vez mais espaço para comportamentos “livres” e “transgressores”, com cada vez mais empresas e instituições adotando estéticas “coloridas” e posturas “pró-diversidade”, os direitos reprodutivos das mulheres, como o direito à educação sexual e ao aborto, vão de mal a pior em todas as partes do mundo? Qual será a intenção por trás das impressões que recebemos, através da mídia, de que vivemos num contexto com cada vez mais “representatividade” e com exemplos de “empoderamento” e “liberdade”, enquanto, no Brasil dos últimos dois anos, a fome aumentou 14% entre as mulheres e diminuiu entre os homens, totalizando desastrosos 47% da população feminina vivendo em situação de pobreza e insegurança alimentar, em comparação a 26% entre homens? 2
Enquanto mulheres empobrecem em massa e não encontram mais refúgio político para mobilizar pessoas em defesa de pautas básicas e específicas às mulheres, como o acesso a vagas em creches ou a urgente revogação da Lei de Alienação Parental; ao mesmo tempo em que a crise climática e ambiental chega a dimensões extremas e irreversíveis sem qualquer tentativa significativa de reversão e os povos indígenas, guardiões da floresta, são sistematicamente dizimados, com suas meninas e mulheres sendo estupradas e aliciadas à prostituição; ao mesmo tempo em que vivemos uma escalada de retrocessos políticos e desastres ambientais em todo o mundo, que recaem majoritariamente sobre os povos racializados; neste mesmo tempo, nos é vendida a ideia de que, a uma vogal de distância, vem se desenhando um mundo “para todes” — e muita gente está depositando suas energias nisso.
Ainda que um grande número de pessoas tenham boa intenção ao abraçar e reproduzir essa noção esvaziada de feminismo e de progressismo, a crucialidade do momento presente, em que nos encontramos em uma crise civilizatória sem precedentes, nos pede pensamento crítico para tecer análises aprofundadas que cheguem à origem dos grandes problemas de nosso tempo.
Essa é a racionalidade que embasa a perspectiva do chamado feminismo radical, ou o seu sinônimo, o feminismo de raiz, que foca nos conceitos fundantes da teoria feminista. Sob essa ótica, entende-se que a opressão às mulheres não se trata de mais uma em uma longa lista de opressões justapostas, mas sim, da primeira a existir e da qual derivariam todas as outras. Dessa maneira, em oposição à atual tendência despolitizadora de estabelecer hierarquias de opressões individuais, colocando-nos uns contra os outros em discussões infrutíferas, o feminismo analisa as opressões sistemicamente, reconhecendo toda a estrutura de violências que nos acometem, e buscando combatê-las pela raiz.
O feminismo visa à identificação e erradicação do patriarcado, uma cultura masculina de dominação que há cinco mil anos utiliza como estratégia a subjugação do sexo feminino com o objetivo de controlar e explorar a sua capacidade de gerar vida. Em um sistema que busca acumular poderes através da dominação e escravização de outros seres e territórios, essa estratégia é central para garantir que haja renovação da força de trabalho, ou seja, que pessoas continuem nascendo para servirem a tal sistema, independentemente de quão hostil seja a condição de vida nesses territórios violentados, mesmo nos que vivem em literal estado de guerra.
Do controle sobre a nossa capacidade reprodutiva deriva a divisão sexual do trabalho, que empurra mulheres à maternidade e ao trabalho doméstico e de cuidado — funções que são invisibilizadas e não reconhecidas enquanto trabalho. Também a retirada de autonomia sobre nossos corpos em políticas como a da criminalização do aborto, que nos obrigam a parir, inclusive — e muitas vezes, especialmente — em gestações derivadas de estupros. Não por acaso nas guerras, via de regra, os homens são assassinados enquanto as mulheres são estupradas. Para os patriarcas do povo dominante, o trunfo da vitória na guerra é impor uma geração de filhos com seus genes inseminados à força nas mulheres do grupo dominado. Isso é facilmente verificável como acontecimento instituidor da história de violência do colonizador branco contra os povos nativos da América e da África.
Dentro dessa mesma perspectiva de análise, também é central a conhecida correlação entre a condição das mulheres e a da Terra. Ainda que essa ligação seja muitas vezes apontada como fruto de um mero misticismo ou romantização, seu motivo é evidente e diz respeito à realidade objetiva, observável: as mulheres e a Terra são exploradas pela capacidade de gerar vida.
A conexão entre a existência das mulheres enquanto fêmeas e a da terra, de onde tudo nasce, remonta ao surgimento das primeiras civilizações humanas. Amplos estudos feministas nas áreas da arqueologia e história realizados ao longo do último século reúnem evidências de que o período neolítico abrigou diversas civilizações humanas pacíficas, com igualdade econômica e equidade entre os sexos. Essas experiências históricas estabeleceram suas tecnologias e diversas formas de expressão artística a partir de uma relação responsável com os recursos naturais. O que essas diferentes sociedades, distribuídas ao longo do tempo e da geografia, tinham em comum era o culto à deidade feminina, reunindo atribuições das conhecidas geradoras de vida: as fêmeas das diversas espécies, inclusive humana, e, principalmente, a Terra. 3
Assim, se desejamos pensar uma revolução cultural para a criação de uma sociedade justa, equânime e de princípios ecológicos, pondo fim às relações de dominação que deflagaram esse longo ciclo de violências, não podemos abrir mão da teoria feminista, nem tratá-la como secundária, muito menos dá-la por ultrapassada.É a retomada de uma agenda feminista, com nossos pés bem firmados no chão, que abrirá os caminhos para o nascimento de uma cultura pelo bem viver.
1 CORREA, Sonia. “A categoria mulher não serve mais para a luta feminista”. Laura Daudén e Maria A.C. Brant. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 24, p 215-224, 2016.
2 NERI, Marcelo C. “Insegurança Alimentar no Brasil: Pandemia, Tendências e Comparações Internacionais”, Marcelo Neri – 29 pags., Rio de Janeiro, RJ – Maio/2022 – FGV Social.
3 GIMBUTAS, Marija. The Civilization of the Goddess: The World of Old Europe. 1991.
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