O que é ser mulher?
Ou melhor: Por que essa deixou de ser uma pergunta simples?

Dos Mujeres (Retrato de Salvadora y Herminia) – Frida Kahlo (1929)

Woman no inglês, cunhã no guarani, mujer no espanhol, obinrin no yorubá. As diferentes línguas e culturas humanas têm palavras próprias para designar uma mesma definição: a pessoa do sexo feminino. Ainda que as convenções sobre os papéis sociais atribuídos a cada sexo variem consideravelmente entre as culturas, há um entendimento universal sobre a existência do binário homem-mulher, que decorre do dimorfismo sexual observado em humanos e diversas outras espécies animais. 

Por que, então, essa pergunta se tornou tão “complexa” para o pensamento pós-moderno? Por que há, e de onde vem, o esforço por destituir o sentido comum da palavra mulher?

O conceito de mulher enquanto fêmea humana — com seios, vagina e possibilidade de dar à luz — está presente desde os primeiros registros escritos da história humana. Por outro lado, muitíssimo recente é a ideia de “gênero”, que a princípio foi um termo usado para se referir ao conjunto de papéis sociais atribuídos aos sexos. Era nesse sentido que as primeiras feministas falavam em abolição do gênero. Mais adiante, começou a ganhar força a teoria da “identidade de gênero” que, como diz o nome, passa a entender o gênero enquanto uma identidade, uma essência inata ao indivíduo, que poderia estar em acordo ou desacordo ao gênero “atribuído” no nascimento (ou seja, em relação aos papéis sociais atribuídos ao sexo biológico). Dessa maneira, “mulher” passa a ser entendida como uma identidade, um sentimento abstrato que não diz respeito a qualquer critério objetivo.

Junto à noção de gênero enquanto identidade, concebeu-se que seria possível, através de intervenção de tecnologias médicas e farmacêuticas, “adequar” ou “redesenhar” as características sexuais de uma pessoa. Na prática, disseminou-se a ideia de que pessoas podem mudar de sexo, ou de que o sexo pode ser construído socialmente e através de intervenções cirúrgicas. Uma proposital confusão entre conceitos de sexo e gênero desenhou as circunstâncias atuais, em que os estudos sobre a mulher dentro das academias foram amplamente substituídos por estudos “de gênero” e em que crianças na Inglaterra estavam aprendendo na escola sobre a existência de mais de 100 gêneros.

Esses discursos fazem parte do conjunto da ideias da chamada “teoria queer” e são uma expressão do neoliberalismo e sua intensa valorização das “liberdades individuais”, ao esvaziar o sentido de termos tão bem estabelecidos para a população em geral a fim de defender uma teoria aparentemente inofensiva de que “você pode ser o que quiser”, porém com expressivo interesse de mercado. 1 Na tentativa de afirmar um caráter progressista, defensores dessa teoria afirmam que o dimorfismo sexual (ou o binário macho-fêmea) seria uma concepção colonialista da realidade humana. Quando, na verdade, é justamente a dissociação entre natureza e cultura, corpo e mente, sexo biológico e identidade, respectivamente, que decorre diretamente das ideias iluministas que fundaram e justificaram a ofensiva colonial. Eis a autoimagem do invasor europeu: a de um homem dissociado e superior à natureza, munido de tecnologia e capaz de dominar os recursos naturais, os povos “selvagens” e, agora, as características biológicas sexuais inatas dos indivíduos.

Para as mulheres, trata-se de uma mesma guerra que nunca se interrompeu. Uma interminável ofensiva política da violência masculina, numa cultura de dominação fundada na misoginia que se reinventa, mas não recua. A intenção é clara: há cinco mil anos o projeto do patriarcado é o de controlar e explorar, de todas as maneiras, a capacidade reprodutiva das mulheres. 

Enquanto a natureza é explorada em seu potencial de reprodução de recursos naturais, a mulher é quem traz à vida o recurso natural mais essencial para a existência da espécie humana: as próprias pessoas. Hoje, o patriarcado vislumbra o seu ápice na utilização de tecnologias de ponta para viabilizar a gestação em úteros artificiais, e prepara o terreno com a reconstituição da linguagem e o apagamento da categoria mulher. É o ato final do projeto patriarcal: a derrubada da barreira biológica que define a existência das mulheres e que limita o poder masculino sobre a vida. É o tecnopatriarcado, que está cada vez mais próximo de tornar real o imaginário transhumanista que ronda o mito patriarcal desde o seu princípio. 

A linguagem também é território político e hoje sofre com uma nova ofensiva colonizadora. A palavra mulher e seu conceito histórico são indispensáveis para nos identificarmos enquanto categoria social e nomearmos a opressão que recai sobre nós. Mulheres é o que somos, pessoas adultas do sexo feminino. Não abriremos mão do direito de definirmos a nós mesmas.


1 Jennifer Bilek reuniu farta evidência dos interesses mercadológicos pela ideologia de gênero.

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