Apesar da perseguição crescente, representantes dos movimentos marcaram presença com fala histórica e entrega de cartas à ministra Aparecida Gonçalves, em encontro que aconteceu em Santa Catarina.
Na última quinta-feira (20), a ministra Aparecida Gonçalves esteve presente em um encontro com Movimentos de Mulheres na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Quem tem acompanhado pelas redes as notícias sobre a perseguição de mulheres feministas Brasil afora, deve ter ouvido falar da declaração misógina e antifeminista proferida pelo Centro Acadêmico de Serviço Social dessa universidade, em que defendeu que feminismo radical, assim como o lesbofeminismo, “não cabe no Serviço Social”.


Não fosse suficientemente ruim por si mesmo, o ato de perseguição promovido pelo grupo estudantil da UFSC aconteceu no mesmo dia da notícia de que, em uma outra Universidade Federal, uma jovem lésbica de 21 anos, que se identifica como feminista radical, tentou suicídio após sofrer com a intensa perseguição de colegas transativistas. Segundo sua mãe, que entrou em contato com lideranças do movimento, ela vinha recebendo diversas mensagens de ódio, com dizeres como “você merece ser estuprada por uma dúzia” e “quero te ver pendurada em uma árvore, sua vaca”. A estudante foi encontrada inconsciente, junto a uma carta de despedida que explicitava a perseguição política como sendo o motivo da sua decisão.
Essa notícia trouxe também à tona que uma outra jovem feminista, estudante da UniRio de 22 anos, se suicidou no ano passado após meses seguidos de assédio moral por parte da militância queer.
É em meio a esse contexto desolador que Celina L., estudante de Doutorado em Serviço Social na UFSC e representante da Frente Feminista pelas Mulheres e Crianças e do Coletivo Feminista de Raiz de SC, proferiu um histórico discurso, frente a frente com a Ministra das Mulheres. Confira abaixo:
Confira a íntegra da carta entregue à Ministra das Mulheres:
CARTA À MINISTRA APARECIDA GONÇALVES
MINISTRA DAS MULHERES
Excelentíssima Ministra,Nós, mulheres de diferentes idades, etnias, credos, classes sociais, condições físicas, orientações sexuais, existimos e formamos uma classe específica: a classe sexual das pessoas nascidas no sexo feminino.
Somos diversas, mas há algo que todas as MULHERES temos em comum: nossa materialidade sexual e nossa histórica opressão dentro do patriarcado. Considerando essas duas premissas, redigimos a presente carta a fim de solicitar que este Ministério das Mulheres considere alguns fatos sobre o cuidado, a proteção, as lutas e os direitos das mulheres.Atualmente, tem sido muito difícil falar sobre a realidade das meninas e mulheres em
nossa sociedade sem sermos acusadas de crimes de ódio (como transfobia), sem termos nossas demandas apagadas e nossas vozes silenciadas através de ameaças e
perseguições.
Grupos têm negado a possibilidade de uma definição precisa e inequívoca do que é
uma mulher, atuando de maneira a inserir nessa definição toda pessoa, ainda que nascida no sexo masculino, que se “identifique como mulher”, ou que se “identifique com o gênero feminino”. Tal possibilidade, a de que pessoas nascidas no sexo masculino possam se mulheres, cria definições misóginas sobre o ser mulher, sem o respaldo da ciência e sem a nossa participação, ou anuência.
Senhora Ministra das Mulheres, a linguagem importa. Existem muitos adjetivos possíveis para a palavra mulher, como mulher negra, trabalhadora, brasileira, lésbica, mãe, etc. Todos esses adjetivos são úteis para determinarmos o grupo demográfico exato dentro do grupo maior de mulheres. Porém, a palavra “cis” é um adjetivo não apenas misógino, como também não serve para qualificar o substantivo mulher.
E por que não serve? A Senhora Ministra deve estar se perguntando. Não serve
exatamente porque ele determina que existem duas categorias de mulheres. Na prática, a palavra “cis” determina que existem mulheres do sexo feminino (cis) e mulheres do sexo masculino (trans). Essa linguagem é problemática para nós em muitas instâncias.
Primeiro porque em uma sociedade e cultura sexistas é necessário nomear os sexos.
A palavra mulher descreve exatamente a fêmea adulta humana. Usar “cis” permite, na
linguagem, que os homens se descrevam como mulheres. E se homens podem se
descrever como mulheres, estamos equalizando homens e mulheres. E se é assim, como defenderemos os espaços públicos e direitos das mulheres diante do sexismo?Sob o ponto de vista da misoginia o termo “cis” determina que existem duas
categorias de mulheres: as que “se identificam com seu gênero” e as que “não se identificam com seu gênero”. O gênero não pode ser interpretado apenas à luz da Teoria Queer, que afirma que o gênero se trata de “uma percepção interna sobre si mesmo”. O gênero, amplamente estudado pelo Movimento Feminista, é uma ferramenta de opressão das mulheres em uma cultura homem-centrada (patriarcado). É exatamente por causa do gênero que existe a violência contra a mulher, a desigualdade salarial, o feminicídio e a pobreza menstrual, por exemplo. Afirmar que ser uma mulher “cis” significa estar “identificada com seu gênero” é ultrajante para nós, porque significa afirmar que nós mulheres nos identificamos com a nossa própria opressão.
A palavra mulher é importante e já está em uso. Lembremos que ela define o grupo
de seres humanos que nasceram no sexo feminino. Não temos que ter medo de usá-la, nem tampouco defini-la.
É importante ter clareza do que é ser mulher porque só se produz políticas públicas
efetivas e eficazes a partir do momento que se sabe quem são os atores dessas políticas. No caso específico e exemplificativo da violência contra as mulheres, precisamos nomear adequadamente quem são os atores dessas violências, quem são as vítimas, como essas violência ocorrem historicamente, e quais são suas determinantes. Sem isso, o que quer que se construa como solução, será ineficiente.
O uso das palavras não é neutro. Por isso destacamos que ser mulher não se
confunde com uma possível identificação com estereótipos sexistas de feminilidade. Ser mulher não é uma fantasia ou uma ideia que pessoas podem vestir e “performar”, não é um conjunto de comportamentos específicos, não é um sentimento ou um conjunto deles. Ser mulher não é uma essência, ou uma alma. Não é uma forma de vestir. Ser mulher não é um conjunto de funções sociais. Também não somos partes de nossos corpos (útero, vulva, vagina) ou funções biológicas (menstruar, gestar, parir, amamentar). E por esse motivo sermos nomeadas como “pessoas com útero, vagina, seios, etc”, “pessoas gestantes”, “pessoas que menstruam” é, além de ofensivo, misógino e desumanizante.
Nós mulheres somos seres humanos completos, indissociáveis de nossos corpos
sexuados e merecemos respeito.
Ser mulher é uma realidade materialmente constatada. A marcação sexual “é uma
menina” determina nossa socialização através do gênero, o que impacta diretamente nos nossos direitos à voz, no uso dos espaços públicos, tarefas e obrigações no ambiente doméstico, desigualdade no acesso ao mercado de trabalho, nos salários, nos impostos que pagamos e nas violências que sofremos apenas por sermos mulheres.
Nossa sociedade é misógina, machista e homem-centrada. Faz poucas décadas que
começamos a conquistar o direito à vida pública e à dignidade humana. Estamos longe, muito longe da equanimidade entre homens e mulheres, mas temos que reconhecer que os avanços conseguidos só foram possíveis porque sabíamos definir quem éramos enquanto grupo e lutamos para que meninas e mulheres não fossem vítimas de discriminação baseada no sexo de nascimento.Listamos aqui, a título de exemplos, algumas das violências que ocorrem por conta da realidade sexual e material de nossos corpos: violência obstétrica, exploração sexual, tráfico de mulheres, pornografia, estupros, violência física, psicológica, patrimonial, controle reprodutivo sobre nossos corpos, feminicídios.
O Brasil é signatário da CEDAW (Convention on the Elimination of all Forms of
Discrimination against Women) que em seu Artigo 1º afirma:
“Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a
mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e
que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento,
gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com
base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em
qualquer outro campo.”
Por tudo isso é importante que se diferencie o gênero do sexo. Sexo é material,
objetivo, imutável. Gênero é construção social, um arcabouço de estereótipos sexistas, comportamentos, sentimentos, recursos, conceitos e ferramentas construídas sobre o sexo de nascimento. Por essa razão, sexo e gênero são diferentes, porém indissociáveis.
Atualmente o gênero tem sido utilizado como uma possibilidade para construções
identitárias. Porém, para nós mulheres, gênero é mais do que isso. Considerar o gênero como identidade autodeclarada, ou como um conjunto de estereótipos sexistas com os quais podemos nos identificar ou desidentificar, sem percebê-lo enquanto ferramenta de dominação masculina, – que determina e define o sexo a ser oprimido e explorado no patriarcado, o sexo feminino -, é prejudicial aos direitos das meninas e mulheres e contribui para a manutenção das hierarquias sexuais, para o agravamento nos índices de violência masculina contra meninas e mulheres, para o apagamento e silenciamento de nossas demandas específicas e para a manutenção da misoginia estrutural que experimentamos diariamente e que resulta nas violências que sofremos como grupo.
Tivemos um governo terrivelmente opressor às mulheres, com uma Ministra que proferiu uma fala bastante representativa do quanto os gêneros são os marcadores de nossas opressões: “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. Essa fala representa uma associação que permanece, ainda que sob outros termos, quando dizemos que há um gênero com o qual nos identificamos e que, se “vestimos azul” sendo meninas, então é porque estamos em um corpo errado.
Estamos acompanhando e seguimos atentas aos novos modos que o Patriarcado, em aliança com o Capitalismo, encontrou para imprimir violências contra meninas e mulheres. Hoje está cada dia mais frequente pais afirmando que seus filhos, crianças e adolescentes, estão no corpo errado, que precisam mudar seus nomes, utilizar
bloqueadores de puberdade, hormonização para desenvolvimento de características do outro sexo, mutilações em crianças e adolescentes que estão em plena fase de
desenvolvimento e descobrimento. Tudo isso porque uma criança de um sexo por vezes demonstra interesses ou falas relacionadas ao gênero que nossa sociedade atribuiu ao sexo oposto.Nós, que somos mães e sabemos que o sexo é imutável, que nossos filhos não nascem em corpos errados, lutamos pela liberdade de expressão de gostos, cores,
comportamentos, sem os erotizar e impor identidades sob uma perspectiva adulta.
Temos inúmeras demandas mais a apresentar, por hora, vamos fazer uma síntese
que parece urgente que o Ministério tenha ciência.O que demandamos:
● É necessário que as políticas públicas para mulheres sejam feitas POR mulheres e PARA mulheres. “Nada sobre nós sem a nossa presença”.
● Utilizar de forma cuidadosa e bastante restrita a palavra “gênero” em substituição a palavra “mulher”, pois o termo gênero apaga os atores e dilui as demandas das mulheres. Lembramos que a palavra gênero surgiu não para identificar pessoas lidas enquanto mulheres ou homens na sociedade, mas para atribuir estereótipos sexistas às pessoas de acordo com seu sexo de nascimento.● Definir mulher, enquanto grupo sujeito de políticas públicas específicas, a partir de critérios materiais, objetivos e imutáveis, sem ideias essencialistas (uma alma feminina) ou definições circulares (mulher é toda pessoa que se sente ou se declara mulher) ou ainda repleta de estereótipos sexistas de gênero (mulher é feminilidade, delicadeza, cuidado, força, usa vestido, maquiagem, cabelo comprido, não possui pêlos, etc). Se qualquer um pode ser mulher com base em subjetividades, então ninguém é mulher. Se ninguém é mulher, então não há como defender os direitos da classe das meninas e mulheres.
● Atender de forma urgente e prioritária grupos específicos de mulheres que por questões de raça, etnia, condições sociais ou físicas precisam de mais atenção: mães solos, mães vítimas da Lei da Alienação Parental, mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres lésbicas, mulheres com deficiência, mulheres pobres, meninas
adolescentes, mulheres idosas, mulheres em situação de cárcere privado.
Certas de que podemos contar com sua abertura para essas questões, contamos com a possibilidade de agendar uma reunião para mais esclarecimentos.
“Toda mulher foi uma menina que sobreviveu.”Santa Catarina, abril de 2023
Coletivo de Mulheres Feministas de Santa Catarina
Também foi entregue à ministra uma carta do Movimento Joanna Marcenal pela Revogação da Lei de Alienação Parental, que você pode conferir aqui, e uma da Frente Feminista pelas Mulheres e Crianças, a ser divulgada pela Frente.
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