Má propaganda, misoginia e violência justificada sob a égide dos direitos humanos.
O texto de Marina Colerato, publicado na semana passada (30/03) em sua newsletter semanal, o Lado B, pareceu atender perfeitamente aos anseios que tínhamos de escrever uma continuação do artigo “A caça às bruxas da era ciborgue”, publicado há mais de seis meses e que, pra nossa alegria, também foi compartilhado no Lado B. Os casos de violência e perseguição por parte de transativistas contra mulheres feministas têm sido tantos, no Brasil e pelo mundo, que esses dois textos podem ser considerados como apenas a ponta do iceberg. Felizmente, não estamos sós e as mentes feministas dedicadas a estudar e divulgar o assunto não são poucas. O trabalho de Marina Colerato tem sido uma referência para a Correnteza Feminista e ficamos felizes de compartilhá-lo em nosso portal.

Há tanta coisa digna de comentário acontecendo do outro lado do arco-íris que seria preciso um dia de escrita para atualizar vocês e tecer minhas próprias observações. Mas como vocês sabem, estou numa corrida insana para minha qualificação na primeira quinzena de abril e me preparando para entregar a primeira versão da dissertação – inacabada – na segunda-feira, o que, somado aos problemas aqui de casa, está consumindo toda minha energia mental. Como saída para o impasse de querer compartilhar com vocês algumas reflexões e não ter tempo o suficiente para isso, escolhi trazer algumas notícias com reflexões breves, somada a uma tradução do The Critic, que pode nos ajudar a encontrar algum senso histórico no nosso presente.
Devo começar com o tiroteio em Nashville. Por curiosidade, fui procurar como a imprensa brasileira estava noticiando o caso. No primeiro texto que eu li, o jornalista se referiu à atiradora como “pessoa”, evitando pronomes e qualquer sinalização de sexo-gênero. Outros veículos escolheram “atirador” e “homen trans”. Outros falaram em mulher e atiradora. O mesmo aconteceu na mídia internacional porque os transativistas estavam, eles mesmos, divididos sobre a questão. Para aquelas por fora do imperativo pseudoprogressista do século XXI, tudo parece uma grande bagunça. E de fato é. O que me faz ver, novamente, grande parte da mídia como panfleteiros de um festival circense onde as mulheres são responsáveis por limpar as merdas dos palhaços.
A questão é que a atiradora – uma mulher de 28 anos transidentificada como homem – tinha um discurso de ódio na ponta da língua e planejou cuidadosamente o tiroteio, que deixou três meninas de nove anos mortas. Mulheres são uma significativa minoria em se tratando de cometer assassinatos do tipo, apenas 2% dos tiroteios norte-americanos foram cometidos por mulheres. O tiroteiro de Nashville é propaganda ruim para a comunidade trans por motivos óbvios e, como sempre, o viés duplo aparece na narrativa do movimento. Como Matt Osborne notou:
Se Hale tivesse sido vítima do tiroteio e não o perpetrador, todas as manchetes do país gritariam sobre os iminentes assassinatos em massa de pessoas transexuais nos campos de concentração pelos nazistas hoje. Mas como Hale era o assassino, somos informados de que sua ‘identidade de gênero’ é completamente irrelevante para suas ações, ou então as justifica totalmente, ou ambas.
Nós já vimos isso acontecer outras vezes de outras maneiras. Quando um homem transidentificado como mulher mata ou estupra alguém, ele é uma “mulher” nas manchetes. Se ele é a vítima, ele se torna rapidamente “mulher trans” em todas as notícias. A narrativa midiática é digna de um estudo pois o viés duplo é descarado. Em outras palavras, pessoas trans só podem sofrer com a violência e o discurso de ódio, nunca jamais cometê-lo, embora, como já mostrei aqui mais de uma vez, tudo o que vemos na internet e fora dela é discurso de ódio dessa comunidade direcionado especificamente para mulheres que não embarcam em suas ficções narcisistas. Até o dia de hoje, um total de zero mulheres mataram ou agrediram fisicamente pessoas transidentificadas. Até o dia de hoje, um total de zero camisetas incitando a morte de pessoas trans foram vendidas. Ainda assim, as armas seguem voltadas contra meninas e mulheres.
As coisas ficam um pouco mais desconfortáveis quando o tiroteio em Nashville acontece poucos dias antes do “dia de vingança trans” (Trans Day Vengeance). Eu soube desse dia horas antes de saber do tiroteio e, Jesus, isso realmente é uma propaganda ruim. Mas, é claro, a violência é totalmente compreensível sob a égide dos direitos humanos, então os comentários afirmam que é ruim matar crianças, mas, poxa vida, “isso vai continuar acontecendo até o mundo deixar de ser transfóbico”. A viagem narcisista, aparentemente, não encontra nenhum limite. Fiquem à vontade para checar essa newsletter da Eliza Mondegreen com uma boa seleção das fotos e flyers sendo compartilhados nas mídias sociais para o encontro de amanhã.
Continuando com a violência progressista de todos os dias, o tiroteio aconteceu poucos dias depois da Nova Zelândia ser pega numa mobilização violenta contra mulheres, onde transativistas agrediram uma senhora de mais de 70 anos com socos e ameaçaram outras mulheres. O vídeo dela levando porrada tomou as redes, mas, é claro, ela mereceu. A violência contra a mulher sempre encontra uma forma de ser justificada. Quando ela é estuprada, estava pedindo. Quando toma socos na cara, também. Enquanto isso, os homens, coitados, são as verdadeiras vítimas. Agredir e matar mulheres é, na verdade, um ato heróico.
Nós devemos aceitar tudo, inclusive homens entrando nos nossos banheiros, tirando o pau para fora e se masturbando na frente do espelho. Isso é realmente progressista, não é mesmo? Não é como se as mulheres estivessem lutando há décadas para não sofrerem com esse tipo de exposição e violência. Nós devemos aceitar e devemos aceitar caladas porque esses “pobres homens” são realmente “oprimidos” (não importa muito que essa “opressão” seja proferida por outros homens, que grande parte dos dados que apoia essa narrativa seja uma grande fake news, tanto no Brasil¹ quanto em outras partes do mundo, que o que estamos vendo acontecer é mulheres abrindo mão de direitos conquistados ao longo de séculos para que homens fiquem livres para exibirem seus fetiches sexuais em público e que meninas estão sendo mutiladas na adolescência para encher os bolsos da Big Pharma). Basta entrar no Reduxxx ou no 4W para ver que algo está realmente errado quando estupradores e pedófilos são mandados para prisões femininas. Embora não haja nada novo sob o sol, é a velha misoginia escancarada e nítida, ainda que disfarçada com bastante glitter e financiamento internacional.
Sinceramente, precisa realmente ser uma topeira misógina para não enxergar nenhuma bandeira vermelha nesse amontoado de violência, fetichismo, lucro e desejo de varrer mulheres para fora da história. O que eu tenho respondido para aqueles e aquelas com questionamentos vagos acerca do sofrimento dos homens, repletos de dados falsos e retórica de twitter é: vá ler a história das mulheres antes de me dirigir a palavra. Sobretudo se você for mulher porque, como bem sabemos, nada pior do que pobres de direita. Ao menos tenha um pouco de decência de entender a fundo o que se está defendendo antes de sair por aí rasgando conquistas feministas.
Em se tratando dos homens que se prezam a demonstrar abertamente o quanto eles reduzem mulheres a um amontoado de esteriótipos que devem sempre ceder, assim como pessoas negras não são obrigadas a educar pessoas brancas, mulheres não são obrigadas a educarem homens embora ao longo dos séculos (1.500 anos para ser mais específica) mulheres falaram, escreveram, pesquisaram e publicaram um tanto de coisas que serviriam para educar os homens se eles tivessem se dado ao trabalho de ouvir. Mas quantos homens estão dispostos a colocar a própria misoginia na reta? Pegue qualquer homem de esquerda e pergunte sobre a história do patriarcado e sobre o que é a misoginia e como ela se manifesta. Muito provavelmente eles vão te dizer que essa é uma questão secundária se comparado ao capitalismo e a colonização (por isso eles nunca se deram ao trabalho de entender a opressão fundante do capitalismo colonial em primeiro lugar). Em páginas “anti-fascistas” homens dizem sem vergonha que misoginia e masculinismo nada tem a ver com o nazismo. Risos. O desconhecimento da história é estonteante, o que pode explicar como a esquerda moderna tem repetidamente falhado miseravelmente em sua tarefa de reunir o proletariado rumo à sua tão querida revolução.
Por fim, compartilho uma tradução do texto da Victoria Smith para o The Critic. Publicado originalmente sob o título Violence against women, but woke. Artigo publicado no dia 28/03/2023. A publicação original pode ser lida aqui.
Neste fim de semana, o New Zealand Herald publicou uma tirinha com um tema familiar. Uma enorme mão masculina — parecendo não diferente da mão de Deus na Criação de Adão de Michelangelo — desce de cima para apontar para uma mulher minúscula. A mensagem? Mulher minúscula precisa de STFU [em português, calar a boca].
Não sou a primeiro a notar semelhanças entre essa imagem e a propaganda anti-suffragette de um século atrás. Mulheres francas — mulheres que dizem coisas que os homens não querem ouvir — precisam ser mantidas sob controle. Ao tornar o silenciamento das mulheres caricatural, e as próprias mulheres lamentáveis e grotescas, os misóginos procuram dizer a si mesmos que seu comportamento é justificado.
Esta é uma prática antiga. Em From the Beast to the Blonde, Marina Warner descreve uma popular xilogravura do século XVIII que mostra a cabeça de uma mulher sendo martelada em uma bigorna. A placa da oficina, representando “la bonne femme”, mostra uma mulher sem cabeça. Isso é, observa Warner, “uma sátira contra bluestockings, feministas, repreensões e outras mulheres opinativas”. Tenho certeza de que todos nós podemos pensar em algumas palavras atualizadas para o último.
Não é engraçado como algumas coisas nunca mudam? Sim, eu sei que há outra maneira pela qual devemos ler o desenho animado recente. Tem uma legenda (“Retendo o espírito de Georgina Beyer”) e um balão de fala (“Sua propaganda TERF não é bem-vinda aqui”) que implica que esta é uma posição nobre e gentil contra a transfobia. A pequena mulher deveria ser Kellie-Jay Keen-Minshull, enquanto o dono da mão deveria representar Beyer, um político da Nova Zelândia que foi o primeiro membro abertamente transgênero do parlamento do mundo. Então, ainda é uma pessoa do sexo masculino intimidando uma pessoa do sexo feminino, mas com aparente justificativa. Tudo bem dizer às mulheres para serem pequenas, lamentáveis e silenciosas, desde que seja em nome de quebrar o binário de gênero.
No fim de semana passado, vários eventos lembraram às mulheres (mulheres do estilo antigo, ou seja, com os corpos que não se atrevem a ser nomeados) da exigência de sempre incluir homens em sua política e nunca se organizar em seus próprios termos. Depois de séculos de desenhos animados, ainda precisamos dizer, porque cada vez é aparentemente diferente. Na Nova Zelândia, manifestantes violentos interromperam a campanha Let Women Speak da Keen-Minshull; no Reino Unido, tanto o The Lesbian Project quanto um encontro feminista em Hyde Park foram sujeitos a ameaças e abusos. Tudo parece muito familiar, mas estamos destinados a acreditar que a raiva — uma raiva muito masculina — é de uma ordem diferente da do passado.
Estamos destinados a pensar que, desta vez, vem de um bom lugar, porque essas mulheres em particular, TERFs, são ruins. Mesmo que o mesmo grupo (pessoas do sexo masculino) esteja expressando fúria porque o mesmo outro grupo (pessoas do sexo feminino) está fazendo as mesmas coisas (organizando-se politicamente, falando sem permissão, dizendo “não”), desta vez a fúria é progressista. Estamos destinados a pensar que é progressivo porque os homens não se dizem homens. Ou porque as mulheres são todas de direita, mesmo que algumas [a maioria] delas não sejam. Ou porque os homens afirmam estar demolindo as normas de gênero de maneiras que as mulheres não entenderiam. Isso apesar do fato de que eu nunca vi nada mais normativo de gênero na minha vida do que essas birras globais e públicas sobre mulheres fazendo literalmente qualquer coisa que não centralize os homens.
Faz nove anos desde que escrevi pela primeira vez sobre esse problema e instantaneamente me tornei uma das mulheres que deveria ter a cabeça pisada ou os lábios presos com supercola ou qualquer que seja a próxima punição antiga e nova. O que me surpreendeu em tudo isso é o quanto, uma vez que você arranha a superfície das chamadas para “viver além do binário” e “deixe as pessoas serem seu verdadeiro eu”, você encontra um monte de homens que estão fora de si pelo prazer em ter encontrado uma desculpa para colocar as mulheres em seu lugar. A religião não era muito legal para eles; valores tradicionais, muito restritivos; misoginia abertamente de direita, mas não é bem seu estilo. Mas isso, isso é brilhante. Passe o dia acenando o punho para as mulheres, depois volte para casa e abra uma cerveja enquanto se parabeniza pelo grande aliado das mulheres – um novo estilo de mulher – você é.
Esses homens vão fingir que se importam com os antecedentes políticos das mulheres que ameaçam. Eles não se importam. Eles as ameaçam se forem de direita. Eles as ameaçam se forem de esquerda. Eles as ameaçam se forem múmias Mumsnet. Eles as ameaçam se forem lésbicas.
Eles tentarão fundir todas essas mulheres — mulheres que compartilham uma crença na saliência social e política do sexo biológico — em uma massa sub-humana. Como as mulheres acusadas de bruxaria em Bruxas, Caça às Bruxas e Mulheres de Silvia Federici, seus crimes são exagerados “para proporções míticas”, permitindo que seus perseguidores “aterrorizem toda uma sociedade, isolem as vítimas, desencorajem a resistência e façam com que massas de pessoas tenham medo de se envolver em práticas que até então eram consideradas senso comum” (como notar que homens e mulheres têm corpos diferentes).
Há discussões entre essas mulheres sobre onde seus valores são compartilhados, onde eles divergem. Discussões, também, sobre abordagens táticas e compromisso moral. Minha própria visão é que a resistência das mulheres britânicas à misoginia “progressiva” da esquerda reside em não serem empurradas para os braços da direita. No entanto, eu não acho que os homens que atualmente ameaçam as mulheres se importem de qualquer maneira. Se eles não estão chamando as mulheres de direita de fascistas, estão dizendo às mulheres de esquerda que devem pagar por sua desobediência tendo seus direitos “tirados pelos nazistas literais“. Se suas contrapartes da extrema-direita não existissem como um meio de envergonhar e intimidar as mulheres, os misóginos de esquerda teriam que inventá-las.
Uma das coisas mais perturbadoras sobre a violência da multidão contra as mulheres é que, como nos julgamentos de bruxas, uma vez que se torna um espetáculo, se torna autojustificante. Ninguém do seu lado faria isso, certo, a menos que tivessem uma boa razão? Quanto pior parece — ou seja, quanto mais óbvio se torna que estes são apenas homens, gritando com mulheres, ameaçando-as, abusando delas, como sempre — mais necessário se torna cavar nos calcanhares, insistir que os alvos são bruxas reais, desta vez.
No entanto, as bruxas não existem. O que está acontecendo agora é exatamente o que parece. É uma mão masculina, apontando para baixo, tentando silenciar. É um punho masculino encontrando um rosto feminino. É a mesma raiva, o mesmo senso de virtude deslocados. Não há nada mais do que isso.
¹ Uma série de análises sobre os dados divulgados pela ANTRA já foram feitas para demonstrar que as estatísticas apoiando políticas públicas para pessoas transidentificadas é falsa. Ver no Metrópoles, no Aos Fatos, na Pública, na Gazeta do Povo, nessa análise e nessa galeria aqui.
Deixe um comentário