Banheiros separados ou unissex? A questão não é tão simples quanto parece.

As opiniões em torno do debate que mobilizou a corrida presidencial na última semana não conseguem abarcar a complexidade da discussão. Esta não é meramente uma disputa entre progressistas e conservadores: é uma discussão sobre os direitos de mulheres e crianças entre a extrema direita e as demandas do movimento queer.
La rentrée — Anita Marfatti (1927)

Quem acompanha a corrida até o segundo turno dos candidatos à presidência provavelmente viu que a discussão sobre banheiros virou pauta de campanha, após o presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmar que o oponente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iria implantar banheiros unissex em escolas e repartições públicas. As imagens que circulavam entre bolsonaristas mostravam uma ilustração em que um homem adulto dividia o banheiro com uma menina. 

Não demorou para que a campanha de Lula desmentisse a afirmação, classificando-a como fake news. Diversos apoiadores da esquerda se juntaram ao coro para descredibilizar a afirmação utilizada pela campanha de Bolsonaro, que estaria criando pânico moral “para assustar adultos, inventando perigos imaginários para crianças”. 

O fato de que a afirmação na verdade fazia referência à pauta transativista por acesso a banheiros tendo a autoidentificação de genêro como critério (o que, na prática, é o mesmo que unissex) foi ignorado e desconversado. 

A direita popularizou o termo “ideologia de gênero” para se referir e se opor às pautas queer, o que é um termo adequado, uma vez que essa é uma ideologia centrada na existência de múltiplas identidades de gênero e na irrelevância do sexo. Feministas, por sua vez, vêm criticando o movimento queer/trans e suas demandas dentro da esquerda há bastante tempo, mas têm sido sumariamente ignoradas e atacadas por seus posicionamentos. Recomendamos o relato de Maya, uma integrante do Partido dos Trabalhadores, que se posicionou dentro do partido e foi “convidada a se retirar” do grupo que fazia parte.

Banheiros do Museu da Imagem e do Som. Fonte: Carta Capital

Em 2015, a então presidenta Dilma Rousseff aprovou uma resolução do Conselho de Combate à Descriminação e Promoção dos Direitos dos LGBTs que determina regras relativas a pessoas transidentificadas em instituições de ensino público. No artigo 6º da resolução, afirmava-se que “Deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito.” 

Ou seja, a ideia de identidade de gênero transforma automaticamente espaços antes segregados por sexo em espaços segregados por identidade autodeclarada, apagando socialmente o sexo, e tornando os espaços “unissex”. Não há fake news aqui, essa é precisamente uma decorrência da ideia de que gênero é uma identidade e que se sobrepõe ao sexo. É segundo o entendimento de que o critério de identidade de gênero autodeterminada passa a valer para esses espaços, que diversas instituções têm considerado mais simples estabelecer apenas um banheiro “para todes”, “sem gênero”, ou abertamente “unissex”. 

O avanço social e legislativo dessa pauta passa por cima das mulheres e de nossa luta histórica, desconsiderando que os banheiros e outros espaços exclusivos ao sexo feminino foram uma conquista do movimento feminista, possibilitando maior segurança para mulheres e crianças, quando estas passaram a fazer parte da vida pública (o que também foi uma conquista feminista). O próprio Senado Federal teve um banheiro feminino somente 55 anos após sua inauguração e devido a articulação da bancada feminina. 

Deveríamos, então, estar mais tranquilas uma vez que o Partido dos Trabalhadores afirmou que não estabelecerá banheiros unissex nas repartições públicas?

Banheiro “sem gênero” no Rock in Rio. Fonte: Veja Rio

Para quem acompanha criticamente o crescimento do movimento queer no Brasil e em outros países nos últimos anos, é evidente que não podemos nos tranquilizar. De maneira proposital e desde seu princípio, esse movimento tem promovido, com sucesso, uma confusão entre os conceitos de sexo e gênero e utilizado disso em seu benefício. 

Exemplo claro disso é que desde 2018 e sem o menor debate público sobre o tema, pessoas transidentificadas podem alterar o sexo nos registros civis, “não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo”. Ainda que a definição do STJ diga respeito à “classificação de gênero”, o que na prática é alterado é o registro sobre o sexo biológico. Pela decisão, a alteração do sexo no registro civil deve ser feita no assentamento de nascimento original, sendo proibido incluir, mesmo que de maneira sigilosa, a expressão “transsexual”, o sexo biológico ou o motivo da modificação no registro.

Não apenas essas alterações, que influem drasticamente sobre as classificações e a realidade compartilhada, podem ser realizadas a partir da mera vontade do indivíduo, como essas grandes mudanças sociais estão sendo validadas sem nenhum debate público e sem os devidos trâmites legislativos, que buscam resguardar as diversas opiniões dentro de uma democracia. A pesquisadora Eugênia Rodrigues mostra em artigo de 2021 como as políticas de identidade de gênero estão sendo instaladas no Brasil por meio de resoluções casuísticas do judiciário e não pelo debate amplo e pela criação de leis específicas, via legislativo. Ou seja, a despeito dos espaços segregados por sexo constarem na nossa legislação, e do Brasil ser signatário da CEDAW, Convenção Internacional que estabelece os direitos das mulheres com base no sexo biológico, o ativismo jurídico está sendo responsável por determinar de forma unilateral o significado de palavras socialmente compartilhadas e basilares no nosso vocabulário, como mulher e mãe.  

Assim, o apagamento jurídico do sexo anda a galope em terras brasileiras. Se a esquerda se posiciona sobre os banheiros unissex, mas esquece de tomar partido sobre o que é e a quem pertence o sexo feminino, é porque se interessa apenas em acalmar momentaneamente aos eleitores conservadores, mas não está interessada em se posicionar sobre a verdadeira questão por trás disso tudo, que é o impacto do transativismo sobre a população brasileira e o projeto de apagamento político das mulheres.

As consequências de separar espaços públicos por autoidentificação de gênero, e não por sexo, estão sendo sentidas ainda mais dramaticamente em outros países, onde o movimento trans/queer se encontra no que parece ser o seu auge. E aqui é importante dizer que não estamos falando apenas de banheiros. Tem se tornado rotina que pessoas do sexo masculino, encarceradas por crimes graves, frequentemente de abuso sexual de mulheres e crianças, solicitem transferência para prisões femininas, utilizando-se do argumento da transição de gênero. A página de jornalismo independente Reduxx traz, semanalmente, diversos casos desse tipo, incluindo de pessoas que, depois de cumprirem a pena, “voltam a ser homens”. Os casos que se acumulam diariamente também podem ser consultados no site Woman Are Human e na página do Instagram TRA Crime

É importante mencionar o cenário internacional para percebermos de maneira mais clara que separar banheiros por identidade de gênero não é uma pauta isolada ou menor, mas o ensejo para uma legislação baseada em uma ideologia que é tão antifeminista quanto a extrema direita. Por aqui, os casos mais conhecidos e já recorrentes são os de pessoas transidentificadas humilhando trabalhadores na internet, ao dizerem que sofreram transfobia porque não foram aceitas no banheiro que gostariam de usar.

A discussão na perspectiva do transativismo sobre os banheiros, além de acusações de “transfobia”, promove um esvaziamento histórico da conquista de espaços femininos. São linhas argumentativas que questionam “a divisão binária dos banheiros”, falam de como os banheiros são espaços de afirmação de estereótipos, de divisão social por gênero etc., o que apaga totalmente a razão de existência dos espaços exclusivamente femininos: a proteção contra violência masculina. Se a proteção contra violência masculina não é mais a questão central (que foi substituída pela inclusão), logo os abrigos contra vítimas de violência também não poderão mais ser segregados por sexo para manter o ambiente seguro: eles serão segregados por identidade de gênero autopercebida para manter o ambiente “inclusivo”. Na realidade, isso já está acontecendo. 

No momento em que o PT precisa negar uma pauta transativista, como se ela nunca tivesse sido realidade nas discussões do partido ou como se não fosse considerada legítima pela esquerda, fica ainda mais explícito que a batalha política entre os presidenciáveis (e entre esquerda e direita) está sendo travada no campo da moral e dos costumes, mais do que com relação aos projetos de país. Não há possibilidade de conciliação entre propostas como banheiro unissex e a realidade vivida pela maioria da população brasileira, especialmente mulheres e crianças empobrecidas, as mais atingidas pela violência sexual e que em sua maioria tem nas religiões cristãs o fundamento moral para estabelecer um senso de autoproteção e segurança . É aqui que percebemos a defasagem da esquerda pós-moderna em dialogar com a realidade  da população, fazendo com que cada vez mais pessoas se desidentifiquem com esse lado do espectro político e, diante do cenário polarizado, se aproximem da extrema direita.

Não se pode responsabilizar somente a direita pelo seu jogo sujo e, muitas vezes, difamatório sobre a esquerda. A esquerda também carece severamente de autocrítica. Os argumentos da direita contra a esquerda são também resultado da mobilização irreal e irresponsável dos movimentos sociais identitários quando se chocam com o contexto sociopolítico brasileiro. (Aqui, faz-se necessário um esclarecimento. Usamos “identitário” não no sentido que a teoria-movimento queer o usa, quando se colocam como “pós-identitários”, enquanto a classificação de pessoas do sexo feminino como mulheres seria “identitária”. Assim como o conceito de gênero, temos um entendimento completamente oposto. Os movimentos identitários advém do pós-modernismo que se afasta da materialidade e passa a privilegiar a subjetividade e a moralidade de grupos que partilham dessa subjetividade em comum. É esse privilégio do indivíduo sobre o coletivo, da subjetividade sobre a realidade, da linguagem sobre o fato, e da moralidade sobre a ética coletiva, o real problema do chamado identitarismo.)

O caso da “fakenews” do banheiro unissex é mais uma prova do quanto a teoria e movimento queer, e as pautas identitárias como um todo, são um cavalo de tróia que segue enfraquecendo a esquerda e a desconectando da população em geral, que não está inserida no debate promovido pelo campo progressista: um debate teórico e acadêmico, demasiamente abstrato e alheio à realidade material, incapaz de gerar diálogo com a classe trabalhadora, suas tradições e narrativas.

E aqui há um ponto central. É esperado que qualquer movimento revolucionário gere uma reação conservadora, e, portanto, a moralidade calcada na religião e na tradição patriarcais não deve ser um impeditivo à luta social, mas algo a ser modificado no longo prazo por meio do trabalho de base. Uma luta se torna legítima  à medida que tem sua racionalidade e ética respaldadas na materialidade da opressão, que inseridas nos trabalhos de base, são ferramentas para que a moralidade conservadora perca força. No entanto, diferentemente do que a esquerda hegemônica avalia hoje, a redefinição dos sexos em termos de masculinidade e feminilidade e a adequação do corpo por meio de uma indústria médica e farmacêutica não é uma pauta revolucionária, mas sim, ela mesma, a reação aos avanços do feminismo no século passado. O backlash patriarcal ou a reação às conquistas das mulheres veio tanto do conservadorismo de extrema direita,  como da repaginação do mito patriarcal que é a teoria queer,  que diz que as mulheres não são o sujeito político do seu próprio movimento, que elas não são uma realidade material, mas sim, uma ideia, um sentimento, uma identidade passível de ser apropriada, e que elas não podem ter uma palavra para definir a sua especificidade, que é ser do sexo feminino.  

Assim como a burguesia tem suas frações, que apresentam interesses mais ou menos conflitantes a cada momento histórico, o patriarcado também tem suas diversas facetas. O que a teoria/movimento queer traz de novo não é a emancipação de pessoas oprimidas e discriminadas, mas sim, a reescrita da linguagem e a redefinição de conceitos, buscando apagar o sexo, repaginar o gênero, criar novos nichos de mercado — hormônios, cirurgias, reprodução artificial — e normalizar a desconexão com o corpo e a sua remodelagem sob demanda. Nada mais neoliberal e patriarcal. Por sua vez, o conservadorismo (atrelado à religião e ao gênero enquanto papel social imposto aos sexos) rechaça as demandas metafísicas advindas desse pós-humanismo, porque são dois idealismos e moralidades conflitantes, não porque um é revolucionário e o outro conservador. Com isso, a teoria-movimento queer não apenas é reacionária à luta das mulheres, como faz a extrema direita e o conservadorismo crescerem, como em uma guerra de religiões, ambas contra as mulheres. 

É fundamental que o feminismo se afaste de perspectivas identitárias, pois ser mulher não é uma questão de identidade. Precisamos, sempre, nos aterrar na perspectiva material de que a opressão sobre as mulheres é uma opressão sobre o sexo feminino, sobre a nossa capacidade reprodutiva presumida. É por essa razão que o aborto é ilegal. É por essa razão que mulheres continuam tendo salários mais baixos, e que sofrem com a maternidade e trabalho de cuidados compulsórios. É por essa razão que homens saem ilesos de suas práticas de violência contra mulheres, que meninas são mortas logo que nascem, que são vendidas à prostituição pela família, que são casadas quando crianças, e que sofrem mutilação genital e violência obstétrica, . 

A agenda feminista é uma luta pelos direitos básicos de mais da metade da população, que são as mulheres e crianças. 

Entre uma extrema direita conservadora e uma esquerda entregue ao queerativismo (e ao mercado transumanista por trás dele), o feminismo sobrevive em completo isolamento e ostracismo político. Não podemos negociar nossos espaços, nossos direitos e nossas pequenas e árduas conquistas coletivas para tomar uma posição que acreditamos ser “a menos pior”. Usemos nosso voto, sim, para eleger um governo não genocida, minimamente preocupado com o ecocídio e um tanto mais aberto às pautas feministas, mas não nos enganemos: se Lula for eleito, seremos oposição feminista crítica, e cobraremos da esquerda que hoje rebate as supostas fake news sem fazer um debate honesto. 

Nunca podemos esquecer que a conquista de espaços exclusivos para mulheres são marcos históricos do movimento feminista e, quando começamos a ser coagidas a ceder esses espaços para pessoas do sexo masculino (independendemente de como se identifiquem), nossos direitos, nossa luta e nossa existência estão em risco.


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  1. Avatar de Daniele Farah Soares

    Estava estudando o protocolo do cnj para julgamento com perspectiva de gênero e me deparei com o podcast de vocês.

    Confesso que estou em pânico, me abriu os olhos para tanta coisa. SURREAL, sqn 😳 estamos o tempo todo sendo manipuladas e o intuito é apenas manter a dominação.

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