Como parte do atual cenário da escalada de violência política, mulheres feministas estão sendo sistematicamente perseguidas e silenciadas pelo transativismo. Casos mais recentes envolvem criminalização.

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela equiparação da homofobia e da transfobia ao crime de racismo, a partir do que atos homofóbicos e transfóbicos podem ser julgados como crime inafiançável, resultando em até três anos de prisão. A decisão que parece, num primeiro momento, favorável à proteção das pessoas dissidentes de gênero contra as agressões machistas, na prática está fazendo parte de uma instrumentalizaçao jurídica para criminalização de uma das bases fundamentais da teoria feminista: a crítica ao gênero.
Em junho desse ano, o Ministério Público de São Paulo denunciou a feminista Isabella Cepa por preconceito e discriminação contra pessoas trans em postagem nas redes sociais. A declaração que repercutiu em relação ao caso foi uma postagem em que ela afirma que “a mulher mais votada [para a vereança em São Paulo] é homem”, referindo-se a Erika Hilton, pessoa transidentificada do sexo masculino que foi eleita para Câmara Municipal de São Paulo em 2020. De acordo com matéria da Folha de São Paulo, a eventual condenação da influenciadora feminista poderia resultar em até oito anos de prisão.
Isabella administra a conta de Instagram @afeminisa, com quase 50 mil seguidores, e é idealizadora de dois projetos de impacto feminista: Livrarista e Herspace.com.br. Antes da denúncia realizada pelo Ministério Público, ela já enfrentava outro penoso processo judicial, em que acusa um ex-namorado de estupro de vulnerável, perseguição, difamação, calúnia, violência psicológica, descumprimento de medida protetiva de urgência e coação no curso do processo. A comunicadora, que há mais de seis anos promove discussões nas redes sociais sobre violência contra a mulher, viu-se ela mesma vítima de um longo processo de violências cometidas pelo seu agressor e pela própria sociedade que, em vez de oferecer recursos para a defesa da mulher, comumente ajuda a perpetuar o ciclo de violência.
Não bastasse ter mudado de estado para tentar superar o Transtorno de Estresse Pós-Traumático e o medo de ser novamente violentada, sem apoio do Estado e das instituições, Isabella agora terá de enfrentar mais um processo judicial. Enquanto luta pela sua vida e dignidade, temendo tornar-se mais uma das seis mulheres assassinadas todos os dias no Brasil, quase sempre por companheiros e ex-companheiros, terá que enfrentar também o Ministério Público, que tenta criminalizar uma sobrevivente de violência sexual por dizer que uma pessoa do sexo masculino é um homem.
Na história de Isabella, assim como na de todas as demais mulheres estupradas, agredidas e mortas diariamente em todo o mundo, sabemos muito bem que a violência tem sexo, e é masculino.
Este não é o único caso em que uma mulher com atuação reconhecida dentro do movimento feminista é criminalizada sob acusação de transfobia. Isso está se tornando uma estratégia recorrente, a partir de uma ampla reforma jurídica e institucional orquestrada internacionalmente pelos defensores da agenda queer. Uma reforma que está apagando juridicamente o sexo, o que invisibiliza as mulheres enquanto categoria social e desestabiliza as políticas públicas voltadas para nossas especificidades. Qualquer menção a uma realidade baseada no sexo e não no gênero passa a ser entendida como crime de transfobia. É, em outras palavras, um processo de criminalização do feminismo enquanto movimento que busca reconhecer e combater a violência masculina perpetrada historicamente contra as mulheres, explorando-nos e vitimizando-nos pelas condições materiais do nosso sexo: a capacidade reprodutiva e o menor porte e força física.
Enquanto homens seguem saindo criminalmente e socialmente ilesos perante agressões reais contra mulheres e pessoas dissidentes de gênero, sendo estatisticamente os verdadeiros perpetradores dessas violências, enquanto a violência intramasculina e entre trans e travestis é uma realidade, as mulheres agora enfrentam mais uma camada de violência misógina apoiada pela sociedade e pelas instituições.
Na Noruega, a feminista Christina Ellingsen corre o risco de enfrentar até três anos de prisão por “incitação ao ódio”. Na declaração investigada como crime, ela questiona virtualmente Christine Marie Jentoft, uma pessoa do sexo masculino que afirma ser mãe e lésbica: “Por que a FRI [instituição da qual Christine é representante] está ensinando jovens que pessoas do sexo masculino podem ser lésbicas? Isso não é terapia de conversão1?”
Recentemente, após manifestações de grupos transativistas, a Universidade Federal de Santa Catarina se posicionou pela criminalização da declaração anônima de uma mulher que escreveu em uma cabine do banheiro feminino que “mulher = fêmea humana”. Segundo o posicionamento da Coordenação do Curso de Pedagogia, onde se passou o caso, “essas práticas não serão permitidas e serão tratadas institucionalmente como falta disciplinar, por atentar contra a segurança e integridade dos corpos e das múltiplas identidades”.
O que é uma mulher? Eis uma pergunta que sempre teve uma resposta simples e que agora foi levantada para rediscussão perante toda a sociedade. Porém não está sendo dado a nós, mulheres, o direito a respondê-la. É em função do que poderia ser considerada, no máximo, uma “dissidência teórica”, mas que se trata realmente da defesa do direito de definirmos a nós mesmas, que mulheres estão sendo acusadas de violentar e atentar contra a integridade de outras pessoas.
Ainda que estatisticamente e materialmente as mulheres não apresentem ameaça para as pessoas do sexo masculino — independente de sua orientação sexual e autopercepção de identidade —, e sim o contrário, são as mulheres — e mais expressamente, feministas — que estão sendo tratadas como violentadoras e sofrendo com criminalização, agressões, silenciamento e ostracismo político.
Trata-se de um grande ato de gaslighting2 praticado coletivamente e institucionalmente contra as mulheres, não apenas como indivíduos, mas como uma classe social. É a continuidade e o refinamento do projeto de dominação patriarcal, que pune mulheres por falarem e se posicionarem em sua autodefesa, e que agora tenta colonizar e tomar posse do substantivo que nos define historicamente enquanto grupo: mulher.
O que um dia chamou-se “bruxa”, e mais recentemente, “feminazi”, agora tem um novo nome: TERF. O apelido, um acrônimo do termo pejorativo “Feminista Radical Trans-Excludente”, criou uma nova categoria de mulher a quem é possível endereçar todo tipo de violência e misoginia, com apoio e aprovação social dentro dos campos considerados progressistas.

É o caso de Joanne Rowling, escritora da famosa saga Harry Potter, a série literária mais vendida da história. Joanne ficou mais conhecida pelo seu pseudônimo J. K., uma escolha motivada pela editora, que acreditava que o público não se interessaria pelos livros escritos por uma mulher. Nos últimos anos, a autora sofreu forte retaliação do público ao passar a se posicionar e se articular contra o apagamento do sexo.
“Se sexo não é real, não existe atração entre pessoas do mesmo sexo. Se sexo não é real, a realidade vivida por mulheres ao redor do mundo é apagada. Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a habilidade de muitos discutirem suas vidas de forma significativa. Não é ódio dizer a verdade” – foi uma das primeiras declarações da autora, a partir do que recebeu o título de “transfóbica”.

A decisão de Joanne de se posicionar publicamente sobre o assunto teve como motivação a defesa da pesquisadora Maya Forstater, que perdeu o emprego após afirmar que pessoas trans não poderiam mudar de sexo, caso que teve grande repercussão na Inglaterra.
Ainda que tenha mantido uma postura diplomática e uma linguagem não-violenta em todas as suas declarações sobre o tema, a escritora passou a receber todo tipo de agressões e ameaças, até mesmo de morte. Diversos ex-colegas, profissionais envolvidos nas produções da saga Harry Potter, se manifestaram publicamente contra as declarações de Joanne. Seja na mídia, seja entre seus colegas famosos, os conteúdos violentos e misóginos direcionados à autora tiveram pouca repercussão.
A alcunha “TERF” tem sido um passe-livre para o silenciamento e violência contra mulheres. A violência baseada em sexo, as ameaças de morte, estupro ou de agressão e tortura com verdadeiro refinamento em detalhes passam em branco aos olhos dos justiceiros da causa queer. Enquanto advogam pela defesa irrestrita das “identidades de gênero”, deixam passar a violação de direitos de meninas e mulheres: mães, feministas, negras e indígenas, lésbicas e bissexuais, trabalhadoras. Meninas e mulheres que são vilipendiadas dia após dia pela realidade irrevogável do seu sexo, e não por uma identidade escolhida.
Esta semana, a feminista Amanda Tabarelli, professora em Ribeirão Pires – SP, relatou em seu perfil do Instagram que foi denunciada pela mãe de uma aluna após falar com seus alunos e alunas sobre a existência de apenas dois sexos na espécie humana. Segundo Amanda, a conversa que teve com os e as estudantes foi sobre não ser possível mudar de sexo até que a ciência evolua para tal e que, enquanto isso, as pessoas podem nascer fêmeas ou machos, e que ela tem o direito de se autodefinir sem ser dissociada de seu sexo biológico. Após repercussão nas redes sociais de alunos, ela foi chamada pela diretoria da escola, que pediu uma retratação por parte da professora. Amanda recusou o pedido, pois entendia que não havia nada de criminoso em suas falas.
Para surpresa de Amanda, a supervisora educacional da cidade apareceu sem aviso prévio na escola para interrogá-la, em uma reunião extra-oficial, enquanto acusada de uma suposta denúncia até então desconhecida pela professora, e pediu para que uma colega de Amanda registrasse o encontro em ata. Esse tipo de ação está fora da legalidade e pode ser classificada como assédio moral.
Não bastasse ter sido coagida em seu local de trabalho, Amanda então recebeu, em suas redes sociais, ameaças e ofensas misóginas por parte de uma pessoa do sexo masculino transidentificada — para o que já registrou boletim de ocorrência:


Como emenda do soneto, essa mesma pessoa que endereçou mensagens de ódio e ameaça à professora faz parte do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de Ribeirão Pires. O Conselho, por sua vez, anunciou que realizará em breve uma reunião extraordinária para falar sobre “casos de transfobia na região”.
O que achamos importante destacar neste caso — para além de mais um evidente silenciamento de mulheres que demarcam o direito a se autodefinir e basear a luta feminista no marcador biológico que é o sexo — é a violência explícita direcionada aos órgãos sexuais. É revelador que, ao mesmo tempo em que transativistas e teóricas/os queer tentam desconstruir bases materiais e biológicas — afirmando que a genitália não é um marcador relevante e que podemos construir nosso sexo artificialmente através da indústria —, os ataques tenham sido tipicamente machistas e direcionados à genitália feminina de Amanda, e não só à sua postura teórica, profissional, política etc. É um ataque à sua constituição física como fêmea humana. Por mais que se negue a existência do sexo, todos sabem que a biologia é um marcador biológico relevante e impassível de desconstrução pela linguagem. Tanto é assim que os homens que tecem as mesmas críticas à ideologia queer não sofrem o julgamento machista, com relação à sua aparência ou ao seu órgão genital, e nem sofrem ameaças de agressão física. Nossa existência como mamíferos, animais de carne e osso dentro de uma cultura patriarcal, não nos deixa esquecer do nosso sexo.
Para fomentar a reflexão, trazemos, novamente, Dee L. Graham, em seu infinitamente relevante livro Amar para sobreviver. Na parte “A violência dos homens contra as mulheres afeta todas as mulheres” (capítulo 3), Graham fala sobre como grande parte da violência masculina é direcionada aos órgãos sexuais, e que essa é uma das chaves para manter mulheres em seus papéis de subordinação:
“O propósito do direcionamento da violência é assegurar que os órgãos sexuais femininos sejam vistos como subordinados e os masculinos como dominantes. […] Se a superioridade do pênis sobre a vagina é estabelecida por meio da violência sexual contra as mulheres, então, nas interações cotidianas com as mulheres, os homens podem se beneficiar dessa violência se eles as lembrarem de que eles, homens, têm pênis e elas, mulheres, têm vagina. Quanto mais frequentemente as mulheres (e os homens) são lembradas da dominância do pênis sobre a vagina, mais benefícios todos os homens colhem em decorrência da violência sexual de alguns homens contra as mulheres.”
(pp. 112-113, grifo da autora)



A frase acima, “uma mulher sem pênis é como um anjo sem asas”, já inserida na cultura pop, presente em séries, redes sociais e estampando camisetas à venda, revela novamente a exaltação do falo ao mesmo tempo em que buscam incessantemente nos fazer crer que o sexo é irrelevante.
Aqui, é interessante voltarmos às violências direcionadas à autora Joanne Rowling que, em inúmeros episódios, recebeu insultos envolvendo a figura do pênis. Parece que o apagamento discursivo e jurídico do sexo torna mais necessário ainda demarcar a dominância simbólica e literal desse órgão. Quem a assediou dessa forma sabe que o órgão responsável pelo estupro é o pênis, e que o estupro é a pior coisa que se pode cometer contra uma mulher, além de a mais eficiente, dentro da estrutura patriarcal, para impor a dominação masculina.
Em qualquer outro contexto, mulheres sendo violentadas dessa maneira por pessoas do sexo masculino seriam prontamente defendidas por movimentos ditos feministas e progressistas. No entanto, um artifício teórico e de linguagem tem permitido que um homem que diga “sou uma mulher” seja isentado e encorajado a cometer misoginia explícita. Enquanto pessoas do sexo masculino usufruem de um convidativo espaço político para publicamente agredir, conspirar contra e clamar pelo estupro e morte de mulheres, a pauta fundamental ao feminismo, que é a crítica ao gênero, se sustenta através de mulheres agindo como uma guerrilha: resistindo por baixo da terra, no anonimato, ou insurgindo corajosas à luz do dia, cientes de que serão retaliadas por isso.
1 Terapia de reorientação sexual (chamada ainda terapia de conversão ou terapia reparativa) compreende um conjunto de métodos que visam eliminar a orientação sexual homossexual de um indivíduo.
2 Gaslighting é uma forma de abuso psicológico na qual informações são distorcidas e seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.
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