Tradução de The Three Faces of Patriarchal Power Texto de Katherine Kinney para o 4W e breve comentário da Correnteza
Quando feministas radicais usam a palavra “poder”, o que exatamente elas querem dizer?

Como feministas, falamos bastante sobre poder — isto é, o fato de que mulheres e homens o possuem em diferente medida. Mas quando usamos a palavra poder, o que exatamente estamos querendo dizer? O entendimento político e sociológico de poder evoluiu ao longo do tempo. Uma definição tradicional de poder diria algo como “Homens têm poder sobre mulheres na medida em que são capazes de fazer as mulheres agirem de maneira que não agiriam em outra situação”.
Por mais que a abrangência dessa definição seja valiosa, ela não é capaz de representar as nuances que explicam os diferentes usos do poder e as diferentes formas que o poder pode tomar. Vou me ater a uma estrutura diferente de poder — com três dimensões. Cada uma delas se apoia e cresce a partir da outra, e cada uma nos atinge de maneira diferente. Chamamos de hegemonia ou dominação total quando todas as dimensões existem juntas.
A primeira dimensão: armas e dinheiro
A primeira dimensão do poder é simples e intuitiva. Ela é sobre violência, ameaça e dependência. Se seu professor quer que você lave o carro dele, por exemplo, e por acaso carrega um taco de beisebol com ele, ele pode te bater até que você se sujeite — isto é violência. Ele pode ameaçar bater em você — isto é uma ameaça. Ele pode te reprovar se você se recusar — isto é dependência.
Qualquer que seja a situação específica, esta primeira dimensão é sobre recursos; recursos como força, violência, aliados, autoridade e riqueza. É sobre ser capaz de forçar alguém, diretamente, a fazer algo que não faria. Em outras palavras, é sobre quem coloca as armas e o dinheiro na mesa.
Em relação às mulheres, é claro, os homens colocam ambos. Em vínculos domésticos, no mundo todo, a riqueza é um recurso que os homens tendem a ter mais acesso do que as mulheres. Suas esposas, seja porque ficam em casa ou porque recebem menos devido à diferença salarial, tendem a ser financeiramente dependentes deles. Além da dependência financeira e do controle, também há as armas de fato: a maior parte das armas de fogo, nos EUA, é propriedade de homens.
Por fim, e o mais importante, em média, homens têm vantagem sobre as mulheres em relação à força física, e essa diferença de recursos garante poder dos homens sobre as mulheres. É esta diferença fundamental que os levou a ter acesso aos outros recursos. Este é um poder que os homens usam com frequência. Vemos na violência doméstica, no assédio sexual, no fato de que espancamento doméstico é a maior causa de morte de mulheres gestantes. Muitos homens usam o recurso da força deliberadamente, para ameaçar ou intimidar. Mas mesmo quando não o usam, a ameaça está sempre lá, nos rondando, porque a existência de uma dinâmica de poder não requer nem um agente intencional, nem uma ação consciente.
A segunda dimensão: controle da agenda e atomização
Essa segunda dimensão do poder se afasta da violência explícita e da ameaça da primeira dimensão. Em vez de controlar uma pessoa diretamente, é sobre controlar a agenda. Isso significa limitar as opções que temos e os debates que podem existir.
Esse controle acontece nos locais de poder institucional — quais leis são propostas e quais nem mesmo surgem para o debate público. Aqueles com essa dimensão do poder não só têm os recursos, mas são capazes de controlar como esses recursos são aplicados, geralmente com a intenção de excluir completamente outras vozes.
Além do conceito literal de agenda do poder institucional, também há o conceito da agenda no âmbito mais público — através da mídia, onde o mesmo processo mantém certos assuntos afastados da possibilidade de discussão na população.
Feministas radicais estão sofrendo bloqueio da mídia e isso impede que nos encontremos. Somos mantidas atomizadas — como átomos, ou unidades, isoladas e individuais, em vez de um todo coeso. A genialidade dessa atomização está em nos fazer pensar que ninguém tem o mesmo problema e, portanto, “o problema sou eu” — não sou gentil, empática e evoluída o suficiente. Nos faz pensar que nós somos as loucas. A solidão de ser aparentemente uma minoria dentro de uma minoria mantém as pessoas submissas e em silêncio.
A genialidade dessa atomização está em nos fazer pensar que ninguém tem o mesmo problema e, portanto, “o problema sou eu”
Se você estivesse lidando com um chefe injusto, por exemplo, você provavelmente não se manifestaria sozinha contra ele. No um-contra-um, ele tem tanto a autoridade quanto o poder; você é dependente dele para receber seu salário e para uma boa referência; você tem medo de ser punida por suas palavras com tarefas desagradáveis, menos horas pagas, não ser promovida, perder uma boa referência ou ser demitida. Mas se você soubesse que suas colegas se sentem da mesma forma, então talvez você dissesse algo.
A atomização mantém as pessoas presas nessa dinâmica do um-contra-um, em uma situação em que estamos, desde o início, comparativamente impotentes. Somos separadas umas das outras e, assim, incapazes de ter vantagem coletivamente.
Uma estratégia paralela é a chamada “mobilização de viés1”, que é uma forma de controlar a agenda pelo uso de rótulos. Isso é o que acontece quando militantes da ideologia de gênero chamam mulheres de “conservadoras”, “intolerantes”, “transfóbicas”, “puritanas”, “TERFs2”, “feminazis”. Isso permite que eles toquem todas as associações e conotações por trás dos rótulos que atribuem a uma mulher, e não tenham que se dar o trabalho de refutar um argumento.
Então essa segunda dimensão tem duas funções: fragmentar os dissidentes e então, se alguém conseguir se organizar apesar disso, controlar o debate através do controle do discurso.
A terceira dimensão: internalização
A terceira dimensão do poder é a mais traiçoeira, porque é a mais sutil. Este é o campo da misoginia internalizada, homofobia internalizada, racismo internalizado. Mulheres que se identificam como homens, em um sentido tradicional da segunda onda feminista (mulheres que se identificam mais com interesses masculinos do que com os seus próprios), estão aqui.
Esta dimensão não nos força a agir contra nossos próprios interesses, como a primeira. Também não nos mantém isoladas e negligenciadas, incapazes de dar voz aos nossos interesses, como a segunda. Em vez disso, esta dimensão faz com que as mulheres pensem que seus próprios interesses são de fato diferentes, e nos molda para ser o que a classe dominante precisa.
Esta ideia é, provavelmente, bem familiar para qualquer feminista radical; é o que o feminismo liberal tem realizado tão bem: fazer as mulheres desejarem o que os homens querem que elas desejem, e pensar não só que são ideias próprias, mas empoderamento feminino.
O que aprendemos com a aplicação desta teoria de poder ao feminismo atual?
Eu acho a segunda dimensão especialmente esclarecedora. Se estão tentando nos atomizar e silenciar (dica: eles estão), não podemos deixar. Sim, há riscos. Sempre há riscos. Mas nos manter separadas e quietas é a vitória deles, e a única forma de escaparmos à segunda dimensão de poder é sair da sombra. Por mais que essa estrutura de poder, com suas três dimensões, seja mais complexa que o entendimento tradicional — unidimensional — de poder, ela não é perfeita.
John Gaventa, por exemplo, em seu livro sobre comunidades mineradoras de carvão em Appalachia, propõe que as relações de poder não são só sobre as ações dos que têm poder, mas também sobre a não-ação dos oprimidos. Sua não-ação, ele escreve, não é coincidência. Ele chama essa não-ação de quietude. Assim como os que têm poder aprendem a exercer sua influência, os oprimidos aprendem a ser impotentes.
No livro de Gaventa, os mineradores começam a se organizar de forma pequena e aparentemente irrelevante, sem chamar a atenção dos que estavam no poder. A primeira coisa que as famílias fizeram, por exemplo, foi organizar a coleta local de resíduos. Esta ação levou a outras cada vez maiores, que se tornaram cada vez mais políticas, apesar da posição desfavorável dos mineradores na cidade operária. A única maneira de desaprender a impotência é agir. Ações, não importa quão pequenas, não importa se dão certo ou errado, nos lembram que temos agência e podemos criar caminhos para diferentes possibilidades futuras. Somos seres autônomos que podem deixar uma marca no mundo.
Dee L. Graham, em Amar para sobreviver, demonstra, com amplas evidências, como nós mulheres estamos sujeitas ao que ela chama de síndrome de Estocolmo social. É a tese de que, coletivamente e individualmente, agimos com os homens como um cativo age com seu captor quando desenvolve a síndrome de Estocolmo3. As condições necessárias para o surgimento da síndrome de Estocolmo nas mulheres em relação aos homens são a) ameaça à sobrevivência (física ou psíquica); b) impossibilidade de fuga; c) “bondade” masculina; d) isolamento de perspectivas que não a do homem.
A autora (assim como outras feministas) entende que nós nos associamos a homens — principalmente através do casamento —, para obtermos proteção de outros homens, principalmente contra o estupro, a violência mais temida pelas mulheres. Essa proteção se dá pela força física; pela percepção dos homens de que a mulher associada a ele é sua propriedade, um código compreendido por seus pares; pelo fato de que uma mulher casada tem menor chance de enfrentar a pobreza (devido à diferença salarial criada pelos próprios homens), entre outros. O que damos em troca são serviços domésticos, sexuais e de procriação (além do trabalho emocional constante de estar hipervigilante sobre as emoções e necessidades do homem). É curioso porque, ao passo que estamos supostamente protegidas de outros homens, não estamos protegidas do homem a quem nos associamos. Os dados sobre estupro marital e outras violências domésticas mostram isso.
Quando estamos numa condição de casamento heterossexual, seja ele oficial ou apenas de moradia compartilhada, existe uma tendência de isolamento, principalmente de outras mulheres. E isso, como Graham coloca, é um dos fatores principais para o desenvolvimento da síndrome em mulheres: se não temos outra pessoa para recorrer quando sofremos violência ou quando temos dificuldades de enfrentar um desafio emocional, recorremos ao próprio abusador para receber algum conforto e, se ele corresponde — com qualquer migalha de atenção que seja — isso nos prende ainda mais.
Além de nossa socialização para a submissão e dependência dos homens, há o incentivo à rivalização com outras mulheres, e o estranhamento com a proximidade íntima entre mulheres. Nesse sentido, se faz valiosa a reprodução de alguns trechos do capítulo 3: “Esse é meu rifle, esse é meu canhão; um é para o prazer, o outro para a diversão”: condições propícias ao desenvolvimento da síndrome de Estocolmo social nas mulheres.
“Quando mulheres se reúnem, mas há ao menos um homem presente, é provável que ocorra isolamento ideológico. Isso acontece porque a maioria das mulheres tenta cuidar dos homens e se precaver contra a raiva deles. […] A maioria dos homens ficam aborrecidos se as mulheres focam a atenção umas nas outras, e a maioria das mulheres têm medo de aborrecer os homens.” (Isolamento ideológico, p. 136)
“Quando se sentem ameaçados, um dos principais recursos dos homens para isolar as mulheres é levantar suspeitas sobre a sua orientação sexual. […] Obviamente, o rótulo [de lésbica] pode ser usado para ameaçar qualquer mulher. […] Assim, mesmo que não falem nada, mulheres jovens que são próximas, independentemente da orientação sexual, sabem que não devem ficar ‘amiguinhas demais’ umas das outras. Por que esse rótulo é tão poderoso? Aparentemente, as lésbicas não colocam os homens em primeiro lugar. As mulheres que não colocam os homens em primeiro lugar não recebem os privilégios (recompensas) concedidos às que se alinham a homens, o que inclui a proteção contra a violência masculina de todos os homens. As mulheres sabem, consciente ou inconscientemente, que os homens são capazes de usar seu poder, com o uso de força bruta, se necessário, para ensinar as mulheres a priorizar os homens. […] Assim, antes de demonstrar afeto, nós, mulheres, pensamos sobre como os homens poderiam se sentir se nos comportássemos de maneira afetuosa demais com outras mulheres. Somos contidas nas nossas relações com outras mulheres para evitar a ira masculina.” (Isolamento físico, pp. 140-141)
É importante que passemos a compreender que um dos principais fatores de proteção, principalmente emocional, é criar vínculos profundos e íntimos com mulheres. Isso envolve buscar conforto, cuidado e compreensão também fora das relações que temos com homens (sejam, eles nossos companheiros, pais ou irmãos). Só assim seremos capazes de começar a romper padrões estruturais das relações e nos entendermos com alguma coesão que nos tire da sensação de isolamento, inclusive dentro dos movimentos sociais.
Ame mulheres!
1 Em inglês, mobilization of bias, se refere a “um conjunto de valores, crenças, rituais e procedimentos institucionais predominantes (‘regras do jogo’) que operam sistematicamente e consistentemente em benefício de certas pessoas e grupos, em detrimento de outros” (Bachrach e Baratz, 1970). [N.T.]
2 Trans Exclusionary Radical Feminists (feministas radicais trans-excludentes). [N.T.]
3 Quando um refém se afeiçoa pelo seu captor.
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