A despeito de mudanças recentes no regulamento de alguns esportes, mulheres e meninas continuam perdendo espaço para pessoas do sexo masculino transidentificadas em competições esportivas, desestabilizando um direito consolidado há pouco tempo.

Em 25/06, o resultado da Red Bull Open Qualifier, competição de skate nos EUA, trouxe à tona mais uma vez a discussão sobre a participação de pessoas do sexo masculino transidentificadas em competições esportivas femininas. Ricci Tres, de 29 anos — a pessoa mais velha entre as competidoras —, pessoa do sexo masculino transidentificada, saiu vitoriosa da competição 1. As adversárias eram, em sua maioria, meninas menores de 17 anos. Ano passado, Ricci não pôde participar da qualificação para os jogos olímpicos por apresentar níveis de testosterona acima do aceitável segundo a regulamentação do Comitê Olímpico Internacional (COI).
Atletas de diferentes esportes têm se posicionado contra a participação de pessoas do sexo masculino em categorias femininas pela razão de que passar por uma puberdade masculina resulta em constituições corporais muito diferentes que proporcionam significativa desvantagem às mulheres, mesmo com intervenção hormonal. Com exceção da flexibilidade, todos os outros parâmetros de desempenho físico indicam vantagem ao sexo masculino 2.
Ao responder os questionamentos acerca de uma possível vantagem sobre as competidoras, Ricci hesita e nega. Diz não compreender como isso pode afetar a competição, já que “skate não tem a ver com o físico, é muito mais sobre a tenacidade das competidoras em enfrentar os obstáculos”. Ricci afirma ter passado por “testes aleatórios e invasivos” que envolviam analisar a quantidade de hormônios no sangue para autorizar sua participação em competições femininas.
É bastante revelador da socialização hierárquica entre os sexos as diferentes declarações sobre esse episódio. Enquanto Ricci, de 29 anos, avalia como “aleatórios” os critérios físicos que visam equanimizar as competidoras de uma mesma categoria, Shiloh Catori, de 13 anos, a segunda colocada, diz que agradece a preocupação e indignação coletiva, mas que está ela mesma mais preocupada com os sentimentos de Ricci, que deve estar se sentindo muito mal com o questionamento público de sua identidade. O skate é um esporte de diversidade e inclusão, diz ela 3.
Enquanto Ricci diz que não vai pegar leve porque as competidoras são muito mais novas, Shiloh, aos 13 anos, já está perfeitamente adaptada aos ditames de como ser uma boa garota no novo estágio do patriarcado. Ela já sabe como ser acolhedora e compreensiva acima de tudo, e como priorizar a todos acima de si, do seu próprio bem-estar, dos seus méritos, e do que é minimamente sensato. Shiloh foi muito elogiada por seu pronunciamento “inclusivo”, o que ironicamente nos explica muito melhor o que é gênero do que as roupas e a autodeclaração de Ricci. Gênero é socialização, é um treinamento, é a imposição de um papel social, e uma ferramenta voltada à dominação sobre o sexo feminino.

Quando olhamos para a história do esporte feminino, o que temos é, mais uma vez, a confirmação de que mulheres são discriminadas não por se identificarem como mulheres, mas por terem a capacidade reprodutiva presumida — o que está diretamente ligado ao sexo biológico. Antes da difusão de categorias esportivas femininas, a narrativa hegemônica tratava a presença de mulheres no esporte como uma ameaça à fertilidade, já que mulheres seriam governadas pelos ciclos hormonais e teriam uma quantidade limitada de energia (a qual seria gasta em grande parte pelo ciclo menstrual). Despender energia com estudos ou esportes levaria, então, à infertilidade. De fato, mulheres que se dedicavam à formação intelectual ou esportiva tinham menos chances de se casarem e terem filho/as, mas é claro que não porque se tornavam inférteis.
Os primeiros esportes que aceitaram a participação feminina eram direcionados somente para mulheres da elite e consistiam em atividades não agressivas, pouco competitivas e associadas ao lazer, que envolvessem uniformes elaborados para reforçar a feminilidade. A força necessária para ser uma trabalhadora do campo ou para parir e carregar uma criança era separada da disposição atlética: uma mulher que demonstrasse sua capacidade atlética publicamente era considerada “exibida”, egoísta e carente de atenção; a atividade esportiva realizada nos primeiros anos de maternidade era considerada imprudente 4.

A conquista — e a manutenção — de uma categoria feminina baseada em sexo nos esportes é fundamental para que mulheres possam realizar todo seu potencial atlético de maneira justa, não só fisicamente, mas socialmente. Não é possível dizer que uma pessoa do sexo masculino transidentificada sofra do mesmo tipo de entraves para a participação esportiva que mulheres. Independente da identidade e performance, mulheres continuam sendo as únicas capazes de gestar, parir e amamentar; as únicas a passar pelo puerpério; as únicas a sofrer todo tipo de violência e exclusão justamente por essas capacidades. Também não é possível dizer que as diferenças físicas entre os sexos desaparecem quando uma pessoa declara que se identifica com o sexo oposto: a linguagem não muda a realidade material que constitui as pessoas fisicamente.
Ainda nesse ano, em outro evento, uma foto emblemática correu o mundo gerando críticas públicas. No pódio de uma corrida “não binária” na Inglaterra duas pessoas do sexo masculino transidentificadas comemoravam o primeiro e o segundo lugar com um beijo, enquanto uma mãe comemorava o terceiro lugar com sua filha pequena no colo 5. Tal como Shiloh, Jo Smith, a mulher com sua filha nos braços, se pronunciou nas redes sociais em prol da “inclusão” e “diversidade”, reiterando que não se sentia injustiçada, pois estava ciente dos termos da corrida.

As primeiras regras para a participação de pessoas trans no esporte (2003) envolviam a chamada transição social e as mudanças hormonais e cirúrgicas. Desde o princípio, isso já ignora tanto o fato de que mudar de sexo é tecnicamente impossível, quanto a socialização distinta entre os sexos e o incentivo que meninos recebem desde cedo às atividades físicas, em oposição a meninas. A transição “completa” era exigida: mudança dos documentos, terapia hormonal por tempo suficiente para diminuir a “desvantagem de gênero” e cirurgia de redesignação. Em 2015, as regras liberaram a competição para pessoas do sexo masculino transidentificadas, definindo como únicas condições que declarassem o gênero feminino, sem alterá-lo por 4 anos, além de apresentar níveis de testosterona abaixo de 10nmol/L por 12 meses antes da primeira competição e manter esses níveis. Atualmente, cada comitê esportivo é responsável por definir as regras de participação para pessoas trans, de acordo com as especificidades de cada esporte, apenas orientados pelo COI. Ou seja, a depender do comitê, pode ser que nem a adequação hormonal ou a transição social seja requerida.
No entanto, em decorrência dos diversos questionamentos públicos, alguns comitês têm enrijecido as regras, pois é evidente que a redução dos níveis de testosterona são insuficientes para eliminar as condições de desvantagem para as mulheres. Pessoas transidentificadas que passaram pela puberdade masculina são, na comparação com mulheres, de 25% a 30% mais fortes, 40% mais pesadas e 15% mais rápidas. A supressão da testosterona, de acordo com esses estudos, reduz força, mas não resulta em perda de massa óssea ou volume muscular. Isso se mostra particularmente importante em esportes com intenso contato físico. Recentemente, a International Rugby League deliberou a proibição da participação de pessoas transidentificadas como mulheres na liga internacional de rugby feminino, até que obtenham resultados conclusivos em pesquisas que avaliem essas disparidades 6. A Federação Internacional de Natação (FINA) também estabeleceu o veto à participação de pessoas do sexo masculino em competições femininas. Isso ocorreu após a vitória de Lia Thomas gerar pressão de treinadores/as e competidores/as sobre a FINA.

Embora a decisão seja positiva por reconhecer que há diferenças entre os sexos em termos de capacidade física, ela é também questionável. Isso porque o veto é parcial: é permitida a participação de pessoas do sexo masculino que tenham parado a puberdade antes dos 12 anos. Essa deliberação abre espaço para um debate ético ainda mais amplo, pois toca na problemática do uso de bloqueadores de puberdade em crianças. Mesmo com os argumentos evasivos do transativismo e do mercado envolvido nesses procedimentos médicos 7, profissionais de saúde têm se posicionado contra intervenções com esses medicamentos em crianças, já que não há estudos que possam indicar os efeitos do uso de bloqueadores de puberdade a longo prazo 8, o que caracteriza experimentação médica com crianças e adolescentes sendo feita em larga escala.
Apesar do pequeno recuo favorável às mulheres nos esportes, é preciso olhar para os fatos de forma contextualizada, levando em conta a agenda mais ampla de apagamento do sexo – uma agenda antifeminista que se impõe sobre direitos básicos conquistados pelas mulheres. Através de sua decisão, a FINA adota uma perspectiva construcionista sobre o sexo: se são os níveis hormonais que definem o sexo de alguém, isso significa que ele pode ser construído artificialmente através de tecnologias médicas e farmacêuticas, desde a infância, e em detrimento da própria saúde. Ao mesmo passo em que o sexo passa a ser tratado como construção social, a identidade de gênero é tratada como uma realidade inata cujo único critério de afirmação é a autoidentificação. É a tentativa de reificar* o gênero e abolir o sexo, o oposto do que objetiva o feminismo.
Esse discurso, de caráter inerentemente transhumanista**, tem como um dos objetivos e consequência imediata o apagamento da mulher enquanto categoria social. Trata-se de uma estratégia de desmobilização de espaços femininos, que se estende para muito além do esporte. O apagamento do sexo já está nas legislações sem nenhum debate público. Já está nos movimentos sociais, com um debate silenciado e criminalizado. Já está no imaginário da esquerda e do próprio feminismo como algo supostamente revolucionário.
Estamos lidando com uma reformulação das estratégias patriarcais. O ideal de mundo que acompanha o mito patriarcal desde o princípio encontra nas tecnologias médicas e farmacêuticas contemporâneas as condições máximas para sua afirmação. É esse paradigma que deve ser combatido na retomada de uma agenda verdadeiramente feminista. Mulheres são indivíduos completos, não um nível hormonal, uma puberdade ou uma identidade, e tão fundamental quanto reconhecer isso é lutar pelos nossos espaços, físicos, políticos, sociais e intelectuais, conquistados pela luta das que vieram antes de nós.
* Reificação é o processo mental de tornar material algo que é abstrato.
** Transumanismo é um movimento filosófico intelectual que defende a transformação da espécie humana com o uso de tecnologias, com o objetivo de aplacar o sofrimento e buscar a evolução humana para além da evolução biológica. Isso inclui a superação e o domínio das instâncias mais básicas da vida: a morte e o nascimento.
1 Atleta trans de 29 anos vence menina de 13; competição de skate é criticada – Gazeta do Povo
2 Comparação de desempenho físico entre homens e mulheres – ABESO (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica)
3 Shiloh Catori on Losing to Ricci Tres: “Let’s Find a Way to Love, Include And Respect Everyone” – Shred Everything Radio
4 Women’s Sports History: A Heritage of Mixed Messages – National Women’s History Museum
5 Trans women cyclists who used to compete as men take first and second place in new ‘non-binary’ race – leaving young mother in third – The Daily Mail
6 Mulheres trans são proibidas de jogar na liga internacional de rugby feminino – CNN Brasil
7 Puberty Blockers for Youth: Information on puberty blocker medication used to delay the onset of puberty. – Provincial Health Services Authority
8 Transgender Interventions Harm Children: No Evidence that Transgender Interventions are Safe for Children – American College of Pediatricians
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